sexta-feira, novembro 02, 2007

UM FILME PARA ACORDAR O PASSADO

Um dos temas recorrentes de parte do cinema português dos últimos anos é o do passado recente do país, em particular questões relacionadas com o antigo regime, exploradas em títulos como "Inferno" ou "20,13", de Joaquim Leitão; "Os Imortais", de António-Pedro Vasconcelos; "Capitães de Abril", de Maria de Medeiros; ou "Preto e Branco", de José Carlos de Oliveira, entre outros.

"Julgamento", de Leonel Vieira, também volta a mexer em algumas feridas eventualmente por sarar, uma vez que no centro dos acontecimentos estão reminiscências de torturas efectuadas pela PIDE a alguns dos protagonistas, obrigando-os a lidar com fantasmas de uma outra época que regressam através de um reencontro inesperado.

Ao assistir a um julgamento em que a sua filha participa como advogada de defesa, Jaime, um professor universitário de meia idade, reconhece no arguido traços de um agente da PIDE que o torturou nos seus tempos de jovem antifascista, e que terá sido um dos responsáveis pela morte de Marcelino, um dos seus melhores amigos.

A revolta que acumulou ao longo dos anos encoraja-o a procurar respostas e a fazer justiça pelos seus próprios meios, e assim rapta o suposto ex-agente e leva-o para a sua casa de campo, onde as regras do jogo são agora ditadas por si. Esse confronto torna-se ainda mais conturbado quando a filha de Marcelino, com quem mantém uma relação, e dois amigos de longa data também alvo da acção da PIDE, acabam por ter conhecimento do rapto e reagem de modo díspar e hesitante, gerando um problema legal e moral de difícil resolução.

Desdobrando-se entre o thriller e o drama, "Julgamento" confirma o eclectismo estilístico de Leonel Vieira, que aqui apresenta um filme nos antípodas da comédia de "A Bomba", do romance de "A Selva" ou do olhar sobre a juventude urbana de "Zona J".
De tom menos ligeiro do que alguns desses títulos, mergulha num retrato geracional de forma mais densa e madura do que se esperaria, evitando as tentações de algum cinema assumidamente comercial que se faz por cá - não há por aqui overdoses de cenas de sexo gratuitas, linguagem censurável ou violência despropositada.

Tecnicamente, Vieira mantém a eficácia pela qual já se havia distinguido, apostando numa realização fluída e dinâmica, mas não epiléptica, num apurado trabalho de fotografia e iluminação e numa banda-sonora capaz de sugerir tensão sem resvalar para picos dramáticos insuflados.

O argumento exibe algumas semelhanças com o de "A Noite da Vingança", de Roman Polanski, que também era marcado por fortes contornos políticos (nomeadamente ditatoriais), onde uma vítima raptava o seu suposto torturador, ainda que "Julgamento" esteja longe de ser um exercício copista, conseguindo definir personagens e ambientes próprios.

Por vezes o debate interno do protagonista é previsível e o de algumas das outras personagens fica por explorar com um grau de complexidade mais acentuado, mas o filme está uns degraus acima de um mero objecto panfletário pronto a despertar consciências, contando com figuras adequadamente ambíguas e credíveis. Também era difícil não o fazer tendo em conta o elenco, sem dúvida um dos mais consistentes vistos numa película portuguesa nos últimos tempos, que concentra uma galeria de veteranos como Júlio César, José Eduardo, Carlos Santos e Henrique Viana, este no seu último papel.

Todos oferecem fortes interpretações, embora Júlio César talvez seja o que mais impressione uma vez que a sua personagem, a protagonista, é a que permite maior versatilidade. Alexandra Lencastre confirma as sólidas impressões que os seus últimos trabalhos têm reforçado, sobretudo os que fez com Fernando Lopes ("O Delfim", "Lá Fora"), e Fernanda Serrano não compromete num papel que poderia ter mais relevo.

"Julgamento" poderá não ser ainda o filme que levará a que Leonel Vieira seja considerado um "autor" pelos seus detractores, mas é um digno exemplo de cinema que tem em vista o grande público sem prescindir de uma abordagem inteligente às questões que foca, servindo-a com uma profissionalíssima embalagem industrial. Caso raro tanto em filmes portugueses como estrangeiros, e que por isso mesmo impõe que este seja saudado, visto e divulgado.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

6 comentários:

Flávio disse...

«[...]uma vez que no centro dos acontecimentos estão reminiscências de torturas efectuadas pela PIDE[...]»

Deviamos oferecer um bilhete ao Jaime Nogueira Pinto.

Não sou grande fã do Leonel Vieira e enerva-me um bocado esta mania com a guerra colonial, mas o senhor tem alguns títulos bem interessantes no currículo - adorei o Mustang e o terrivelmente injustiçado A Bomba (cujo título inspirou um dos mais brilhantes blogues de cinema portugueses).

gonn1000 disse...

Sim, a guerra colonial tem sido um tema demasiado recorrente, mas ainda não tinha visto nenhum filme com este tipo de abordagem. Não inventa a roda, longe disso, mas merece ser visto.

Frankenstakion disse...

Alexandra Lencastre... quero ver!

gonn1000 disse...

Não deverás sair desiludido, ela vai bem.

Joana Amoêdo disse...

Vou ver este filme. Já que este é um post sobre cinema português, gostava de saber se viste o Corrupção, o que achaste, etc. A não ser que seja assunto tabu:-)

gonn1000 disse...

Vai, se não concordares comigo aceitam-se reclamações :)
O "Corrupção" não é assunto tabu por aqui, mas não tenciono pagar para o ver, até porque a "obra" em que se baseia não me interessa e não gostei dos filmes que vi do João Botelho (e se este é a versão de um produtor e deu no que deu, ainda pior).