segunda-feira, novembro 22, 2004

ESPÍRITOS INQUIETOS

"O Sexto Sentido" (The Sixth Sense), de 1999, lançou o culto. "O Protegido" (Unbreakable), um ano depois, confirmou o carisma, e "Sinais" (Signs), em 2002, voltou a comprovar a singularidade do seu cinema. Com "A Vila" (The Village), em 2004, M. Night Shyamalan dá continuidade a um estilo muito próprio e reconhecível, baralhando coordenadas e fugindo a catalogações óbvias. Aquele que é já considerado por muitos como o novo mestre dos twists e de uma forma única de gerar suspense regressa com um filme que, embora possua alguns dos elementos que lhe deram fama, consegue também incluir novas atmosferas e condimentos.

Ambientada numa pequena comunidade rural dos EUA, "A Vila" apresenta o clima de tensão e mistério que envolve a relação dos habitantes locais com a densa e inóspita floresta que cerca o aglomerado humano. O bosque permanece praticamente inexplorado, dada a presença de inquietantes e ameaçadoras criaturas que o povoam e que não hesitarão em devorar os que se atrevam a perturbá-las. Contudo, um homem decide finalmente enfrentar esse território desconhecido e vencer a muralha de medo e assombro que cerca a sua vila. O lacónico e silencioso Lucius (Joaquin Phoenix, a aperfeiçoar o excelente underacting que já registava em "Sinais") dá seguimento aos habituais protagonistas atordoados e discretos dos filmes de Shyamalan (como Bruce Willis e Mel Gibson), ajudando a consolidar o modelo de "hérói" do realizador.

Se as obras anteriores do cineasta se destacavam sobretudo pelas impressionantes reviravoltas finais dignas de antologia, "A Vila" já não se sustenta tanto em torno desse elemento - embora ele esteja ainda presente - e opta antes por gerar uma envolvente história de amor (um domínio não muito explorado por Shyamalan até aqui) aliada a uma narrativa plena de suspense. Claro que ainda há manobras de ilusão e descoordenação capazes de surpreender o espectador mais concentrado e perspicaz, mas desta vez o filme adquire maior intensidade e ultrapassa o estigma de competente e hábil exercício de estilo com que muitos catalogavam os trabalhos do realizador.
Contendo uma aura única e inovadora, "A Vila" é um melting pot que congrega o filme de época, romance, drama, thriller, terror, fantástico e, nas entrelinhas, expõe ainda um considerável subtexto político (que se aprofunda no obrigatoriamente inesperado desenlace). Dominado por uma forte carga hipnótica e etérea, com uma atmosfera absorvente e intrigante, o filme alia um romantismo avassalador e ensanguentando a peripécias enigmáticas, gerando uma fábula sobre as ligações entre a inocência e a mentira, a pureza e a corrupção, o sagrado e o profano.
A singular dupla de amantes constituída por Lucius/ Ivy - impressionante Bryce Dallas Howard, personagem-chave da segunda metade do filme - é responsável por alguns dos momentos mais prolíficos da película, gerando excelentes diálogos e uma química invulgar (particularmente intensa nas cenas em que o casal dá as mãos). Lamenta-se, por isso, que a partir de um dramático acontecimento (muito bem conseguido), a personagem de Joaquin Phoenix não contracene tanto com o seu par amoroso, mas as surpresas que o realizador proporciona a seguir compensam essa oportunidade desperdiçada.
"A Vila" confirma que o cinema - em especial, o americano - ainda é capaz de pisar territórios pouco explorados através de percursos imprevisíveis, suscitando um ambiente de crescente tensão com uma original mistura de elementos. Depois do mediático (e sobrevalorizado?) "O Sexto Sentido", do mais criativo "O Protegido" e do desapontante passo atrás registado em "Sinais", M. Night Shyamalan gera em 2004 a sua obra mais coesa, ambígua e profunda, originando um dos filmes mais belos e, simultaneamente, mais perturbantes do ano.
É certo que, com um elenco de luxo (para além do casal Phoenix/ Dallas Howard, constam ainda Adrien Brody, William Hurt, Sigourney Weaver ou Michael Pitt) e uma genial banda-sonora de James Newton Howard, o resultado já tinha potencial, mas o intrincado argumento, a óptima fotografia e a soberba realização colocam "A Vila" num patamar superior.

E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM

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