sábado, outubro 16, 2004

SIAMESE DREAM

Conhecido por marcantes trabalhos cinematográficos como "O Último Tango em Paris" ou "O Último Imperador", Bernardo Bertolucci volta a gerar impacto e polémica. Proporcionando um retrato da conturbada situação parisiense durante as manifestações do Maio de 68, "Os Sonhadores" (The Dreamers) centra-se na relação de três adolescentes para caracterizar o idealismo e revolta de uma geração.

Matthew (interpretado por Michael Pitt), um jovem norte-americano que vai estudar para França, trava conhecimento com os gémeos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green), encetando uma repentina e inesperada amizade. A relação dos jovens torna-se mais próxima e densa quando Matthew passa um mês no apartamento dos seus dois novos amigos, situação que gera imprevisíveis e intensos acontecimentos. Bertolucci cria uma ousada e enérgica experiência cinematográfica que não teme explorar os limites e tensões das personagens, ilustrando a complexa teia de relações que se desenvolve entre os três adolescentes.

O filme tem gerado polémica e reacções contraditórias um pouco por todo o lado, e essa ausência de unanimidade deve-se, em parte, às descomplexadas e cruas cenas que focam as relações carnais entre o trio de personagens centrais (um pouco como aconteceu há trinta anos com "O Último Tango em Paris"). De facto, durante a fase inicial do filme, parece estarmos perante um eventual descendente de "Ken Park - Quem És Tu?", o controverso filme de Larry Clark estreado no ano passado entre nós que ofereceu um retrato brutal e vertiginoso do sexo na adolescência. Contudo, "Os Sonhadores" não aposta num conjunto de cenas de voyeurismo algo gratuito, antes utiliza momentos íntimos e de considerável erotismo para reforçar o ambivalente e instável elo que se adensa progressivamente entre os três jovens.
Bertolucci origina uma arriscada narrativa que aborda a ambígua fronteira entre a ingenuidade e a perversidade, despoletando um jogo de afectos, experiências, escolhas, desafios e provocações, e traçando uma absorvente viagem sobre o crescimento e o fim da adolescência. Com a alvorada da idade adulta, os três jovens deparam-se com novas questões, ideias e posicionamentos, refutando ou reforçando os ideais ou utopias que guiam a sua existência. O questionamento adquire contornos tensos à medida que os protagonistas se apercebem, gradulamente, das contradições e ironias entre os valores e ideais (revolucionários) que defendem e o estilo de vida (tendencialmente conformista) que adoptam.
Explorando as formas de relação com o(s) outro(s), a capacidade de escolha e transgressão, os limites da amizade, a ausência dos pais e as ligações entre a realidade e a ficção, "Os Sonhadores" constitui um envolvente retrato sobre as dores do crescimento e o contacto com a solidão. Devido e esta temática, o filme exibe alguns paralelismos com um dos filmes-chave do ano passado, o cáustico "As Regras da Atracção" (The Rules of Attraction), de Roger Avary (inspirado num livro de Bret Easton Ellis), outro portentoso e surpreendente estudo acerca dos dilemas de uma geração que também se baseava num vibrante trio de adolescentes.
Para além de um acutilante retrato geracional (ainda actual, apesar de tudo, dado que o contexto do Maio de 68 funciona essencialmente como pano de fundo), Bertolucci proporciona também uma declaração de amor ao cinema e ao poder inspirador e transfigurador das suas imagens, recheando o filme de diversas referências a clássicos intemporais de Chaplin, Truffaut ou Godard. Esse constante recurso a citações pode tornar "Os Sonhadores" numa experiência algo hermética a espaços, mas o filme não vive apenas desse elemento, e utiliza-o sobretudo para caracterizar de forma credível e entusiasmante a paixão dos protagonistas pela sétima arte.
Ávidos espectadores de cinema, Matthew, Isabelle e Theo respiram a energia fascinante das películas que idolatram, mimetizando cenas e acções de algumas obras que marcaram toda a sua existência. Tal apropriação e assimilação da arte cinematográfica acaba por suscitar um ténue limite entre o real e o ficcional, fomentando um código de comportamentos caracterizados pela alienação e dificuldade em contactar com o exterior (situação que adquire sufocantes contornos quase trágicos na recta final do filme).
O regresso de Bernardo Bertolucci transmite uma notável experiência cinematográfica constituída por sumptuosos condimentos, desde a soberba fotografia, a espontaneidade e vigor dos actores, a energia narrativa ou a diversidade da muito apropriada banda-sonora (The Doors, Jimi Hendrix, Grateful Dead e Edith Piaf, entre outros).
"Os Sonhadores" é muito mais do que um mero filme-choque ou um nostálgico e inconsequente exercício de memória fílmica. Bertolucci constrói aqui uma obra marcada pelo desafio e criatividade, gerando um dos filmes mais estimulantes de 2004.
E O VEREDICTO É: 4,5/5 - MUITO BOM

5 comentários:

Randomsailor disse...

Gostei bastante do filme, mas achei que o argumento podia ir mais além... não sei, não me abanou como eu estava à espera. No entanto há momentos de realização geniais como a cena do espelho tripartido na casa de banho ou a cena da Vénus de Millo.

Anónimo disse...

é o meu filme favorito.
gostei bastante da tua análise :)

gonn1000 disse...

Randomsailor: Para mim foi uma grande surpresa, acho que está mesmo muito conseguido.

Lost in Space: Também foi um dos que mais gostei ultimamente. Obrigado :)

Lid disse...

Acabei de assistir. Adorei a fotografia, os personagens e Eva Green atuando.
No início pensei: ah, usar The Doors e Janis Joplin como trilha sonora é cliché demais para filmes que se passam na década de 60.
Mas depois pensei que esta é a melhor trilha para essa época mesmo.lol

Muito bom!

gonn1000 disse...

Eu avisei que era mesmo muito bom, ainda bem que gostaste ;)