sábado, março 03, 2007

UM ADMIRÁVEL MUNDO NOVO DE ESCAPISMO

Terceiro romance de Michael Chabon, "As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" (The Amazing Adventures of Kavalier & Clay) foi o que proporcionou ao escritor norte-americano ganhar o Pulitzer em 2001 na categoria de ficção, cimentando a boa reputação iniciada em "The Mysteries of Pittsburgh" (1988) e continuada em "Prodígios" (Wonder Boys, de 1995), este último adaptado para cinema por Curtis Hanson.

O livro alicerça-se na relação de amizade de dois primos que partilham a paixão pela banda-desenhada e acabam por se tornar numa das principais duplas criativas do género, durante os anos 40. Sam Clay, adolescente residente em Brooklyn, Nova Iorque, recebe uma noite a visita inesperada do seu primo checo que desconhecia, Joe Kavalier, cuja ascendência judia o obrigou a fugir de Praga, controlada pelas tropas nazis durante o início da Segunda Guerra Mundial. Se o primeiro teve até então uma vida pacata na companhia da sua mãe e, esporadicamente, do pai, o segundo foi o único elemento da sua família nuclear que conseguiu emigrar, após uma série de episódios arriscados, mas tem ainda a esperança de conseguir trazer para os Estados Unidos, pelo menos, o seu irmão mais novo.

Apesar de personalidades e vivências díspares, os dois jovens rapidamente travam uma amizade que os interligará durante anos, em parte motivada pela paixão que nutrem pela nona arte e pela parceria profissional que esse gosto comum os leva a gerar. Sam toma a seu cargo os argumentos, Joe ocupa-se do desenho e essa simbiose permite-lhes criar uma série de personagens mediáticas, a maior delas O Escapista, um dos muitos super-heróis que surgiram depois do sucesso de vendas do Super-Homem.

Através do percurso e crescimento dos seus dois protagonistas, "As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" traça uma envolvente perspectiva sobre as contrariedades do american dream, centrando-se na evolução da cultura popular das últimas décadas, com especial incidência nos comics e no papel que os seus heróis adquiriram durante o Holocausto.
Genuína e cativante ode à capacidade de evasão que esta amálgama de artes gráficas e literárias proporcionou durante a Era Dourada, proporciona uma interessante análise às singularidades deste meio e ao contexto do seu surgimento.

Chabon impressiona pela riqueza histórica palpável ao longo do livro, fruto de uma longa pesquisa onde contactou com muitos argumentistas e artistas que iniciaram as suas carreiras na época, casos de Will Eisner (autor de "Spirit") ou Stan Lee (talvez o mais emblemático criador da Marvel Comics), entre muitos outros.
O escritor baseou-se nestes relatos para desenvolver a história de Joe e Sam, em especial os momentos que se referem aos bastidores editoriais, alguns dos que emanam maior verosimilhança ao longo da acção. Paralelamente, evoca outras figuras reais como Fredric Wertham, o psicólogo cujo livro "Seduction of the Innocent" desencadeou uma caça às bruxas que quase conduziu ao fim dos comics - devido, sobretudo, às supostas conotações sexuais que estes continham, por exemplo na relação "ambígua" entre Batman e Robin - ou Orson Welles, cujo trabalho na realização ajudou a redifinir os cânones da estrutura das pranchas.

No entanto, o livro não se esgota na exploração da natureza da banda-desenhada e oferece um olhar sobre a realidade americana - particularmente a nova-iorquina - da década de 40, focando ainda questões como o tratamento dos judeus, o núcleo familiar ou a homossexualidade, elementos que, com maior ou menor incidência, entrecruzam o caminho dos dois protagonistas.

Michael Chabon com as 'action figures' de Batman, Lanterna Verde e Super-Homem

Chabon nem sempre consegue equilibrar a gestão de tamanha diversidade ao longo das mais de 600 páginas, pois por vezes a acção torna-se demasiado dispersa e há capítulos que se prolongam para além do necessário (como o de Joe na Antárctida). O espaço dado a cada um dos protagonistas também é desequilibrado, uma vez que Sam é uma personagem menos presente do que Joe, embora talvez mais interessante devido aos conflitos com a sua sexualidade, à forma ambivalente com que encara a BD ou à solidão de que não parece conseguir escapar.

"As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" pode nem sempre conseguir despertar o mesmo entusiasmo, mas nunca se torna previsível ou banal e é resultado de uma evidente paixão do escritor pelas personagens e dedicação aos temas focados. Apresentando uma sólida densidade dramática e uma imaginativa mistura de realismo e fantasia através de uma escrita acessível, embora exigente, é um livro especialmente recomendável a amantes da nona arte mas não deixa de possuir atributos capazes de seduzir um público mais abrangente.

Chabon viria a alargar a sua proximidade com os comics ao assinar o argumento de "Homem-Aranha 2", de Sam Raimi, não por acaso um dos poucos filmes de super-heróis dos últimos anos que funciona plenamente enquanto delicioso e irresistível escapismo. Resta esperar que semelhante impacto se registe caso "As Espantosas Aventuras de Kavalier & Clay" chegue a ser adaptado para cinema - com realização a cargo de Stephen Daldry ("Billy Elliot", "As Horas") -, mas mesmo que tal não aconteça, a (re)descoberta do livro será sempre uma hipótese bastante recomendável.


E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

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