quarta-feira, dezembro 22, 2004

OS INADAPTADOS

Um daqueles filmes que passou injustamente despercebido em 2002, "Ghost World - Mundo Fantasma" destacou-se, contudo, como um dos mais surpreendentes desse ano, tornando-se instantaneamente numa obra de culto. Embora seja um filme norte-americano sobre adolescentes, não cai no caminho mais óbvio e convencional das piadas fáceis e referências a sexo de 2 em 2 minutos, recusando igualmente personagens baseadas em estafados clichés.

Adaptando para a sétima arte a obra de banda-desenhada homónima de Daniel Clowes - um dos mais estimáveis autores underground norte-americanos -, Terry Zwigoff apresenta um filme que diverge em tudo da lógica dos tradicionais comics de super-heróis que têm marcado grande parte da produção cinematográfica recente made in USA. Aqui não há efeitos especiais impressionantes nem intrépidos protagonistas, mas um universo minimalista povoado por gente normal que vive um quotidiano melancólico e pouco reluzente. Assim, foca-se aqui a alienação, o consumismo ou as (sub)culturas urbanas vistas pela óptica de duas adolescentes desalinhadas.

Enid (Thora Birch, de “Beleza Americana”) é uma jovem inteligente e criativa que, ao terminar o liceu, questiona quais as perspectivas para o seu futuro e os rumos a seguir numa nova fase da sua vida. Acompanhada pela sua melhor (e única?) amiga Rebecca (Scarlett Johansson, antes do boom de "Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho"), Enid vive um tenso processo de crescimento onde a chegada da idade adulta está cada vez mais próxima, trazendo uma carga de responsabilidades e escolhas que devem ser feitas. As duas amigas, quase sempre afastadas dos colegas, nunca estiveram muito interessadas em integrar-se, mas pela primeira vez apercebem-se de que talvez devam - ou terão de - fazê-lo. Valerá a pena? E qual o preço a pagar pela integração?

Terry Zwigoff combina eficazmente drama e comédia, tornando "Ghost World - Mundo Fantasma" numa obra que segue a melhor tradição das dramedies características de domínios do cinema "indie". Irónico e sarcástico sem deixar de ser genuíno e emotivo, o filme é um intenso retrato da realidade mundana e monótona dos subúrbios, onde jovens outcasts isolados lidam com o desencanto de ambientes vincados pela inércia. A espaços, surge por aqui o humor ácido próximo da série de animação "Daria", da MTV, embora a película de Zwigoff seja mais profunda e intimista.

O ritmo da narrativa é, por vezes, demasiado lento e arrastado, mas acompanha bem os cenários de monotonia e tédio que envolvem as personagens, dotando o filme de um realismo simultaneamente envolvente e claustrofóbico. "Ghost World - Mundo Fantasma" é um incomum olhar sobre os nerds e os falhados que, apesar do seu potencial, acabam por ser sempre ignorados ou desprezados e, por isso, são quase invisíveis, como fantasmas. Com uma vida social quase nula, tornam-se gradualmente incapazes de estabelecer laços e relações com os que os rodeiam, habitando áridas esferas de solidão. Enid, mais do que Rebecca, incorpora esses elementos, e quando tenta aproximar-se de alguém apercebe-se de que é usada e magoada.

Um dos mais entusiasmantes e memoráveis filmes norte-americanos recentes, "Ghost World - Mundo Fantasma" é uma discreta pérola que expõe com sensibilidade e alguma crueza a vertente angustiante, dolorosa e solitária do processo de crescimento, juntando-se a títulos igualmente recomendáveis como "Donnie Darko" de Richard Kelly, "L.I.E." de Michael Cuesta, "Elephant" de Gus Van Sant ou "SubUrbia", de Richard Linklater.

E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM

1 comentário:

O Puto disse...

Foi um dos filmes mais originais desse ano, com uma boa e pouco comum adaptação do mundo da BD. Bizarro e emotivo.