quinta-feira, maio 03, 2007

O SEXO E A CIDADE

John Cameron Mitchell fez-se notar por "Hedwig - A Origem do Amor" (2004), atípico musical glam/trash que partia das experiências de um músico transexual para propor uma reflexão sobre as interligações entre o corpo, o sexo e a identidade. Sendo um projecto curioso, ficava no entanto aquém da originalidade da proposta mas dava a entender que o seu realizador tinha algo a dizer.

"Shortbus", o seu segundo filme, repisa as mesmas temáticas num contexto diferente, numa Nova Iorque com fortes marcas do 11 de Setembro e com um enfoque não numa perspectiva individual, mas colectiva. Mais uma vez as disfunções físicas encontram-se indissociáveis das emocionais e o sexo é encarado como fonte de muitas das frustrações das personagens, e simultaneamente como tentativa de resolução ou alheamento destas.

O filme segue dois relacionamentos, um hetero e outro homossexual, onde um dos cônjuges é incapaz de resolucionar uma crise interna que já se prolonga há muito. Sofia, terapeuta sexual, receia partilhar ao seu marido que nunca teve um orgasmo, e James sugere ao seu namorado a opção por uma relação a três como forma de injectar nova vida ao seu quotidiano.
As vidas dos protagonistas e das outras personagens - entre as quais uma dominatrix entregue à solidão, um voyeur obcecado pelo casal gay ou um ex-modelo optimista - cruzam-se num clube nocturno underground, Shortbus, onde além de música ao vivo e do convívio regado a álcool há uma visão - e prática - bastante liberal do sexo, aglutinadora de todos os tipos de orientações.

Ainda mais descomplexado e incisivo do que o seu antecessor, muito por culpa das cenas de sexo explícito que não tardam a surgir, "Shortbus" resulta numa obra mais coesa mas que, mesmo assim, não escapa a alguns desequilíbrios. Mitchell tanto aposta, por um lado, na irreverência e provocação, como investe ocasionalmente em episódios poéticos e sensíveis, o que por vezes atira o filme para caminhos indecisos e inconsequentes. Fica assim por esclarecer a pertinência de algumas cenas de sexo ostensivas ou, no pólo oposto, o desenlace redentor que não dispensa rodriguinhos ingénuos e ligeiramente irritantes.

Mesmo vitimado por um excesso de pretensão, "Shortbus" consegue abordar questões relevantes com alguma complexidade, valendo-se de um argumento dominado por um sentido de humor oportuno sem prescindir de peso dramático. O elenco, constituído por actores amadores seleccionados a partir de um casting online (onde cerca de 500 candidatos enviaram gravações), é eficaz e dispara os diálogos com convicção, e o facto de serem todos figuras desconhecidas contribui para que o filme ganhe maior naturalidade e verosimilhança.
Mitchell sai-se igualmente bem na montagem fluída e numa realização capaz de criar uma atmosfera intimista, e a forma como a cãmara transita entre os espaços, movendo-se por uma Nova Iorque recriada em miniatura, é imaginativa e concede ao filme um peculiar cuidado visual.

O realizador, que é também cantor, volta a privilegiar a música, elemento importante para a definição de ambientes, e aqui envereda não pelo glam rock mas por territórios indie lo-fi, com canções dos Yo La Tengo, Azure Ray, Scott Matthew ou The Hidden Cameras. A interligação com domínios musicais estende-se aos cameos dos Animal Colletive ou de JD Samson, das Le Tigre.

Não impondo ainda John Cameron Mitchell como um nome essencial dentro do cinema recente, "Shortbus" confirma-o já enquanto cineasta com uma linguagem própria, estando uns degraus acima do seu primeiro trabalho e expondo uma sensibilidade mais apurada e menos artificiosa. Um nome a seguir, autor de uma filmografia que começa a entusiasmar.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

15 comentários:

Anónimo disse...

Vi. Adorei.

Anónimo disse...

Mas também não fui muito à bola com o final.

gonn1000 disse...

Sim, o final e outros aspectos desequilibram um pouco o filme, mas no geral vale a pena.

Wellvis disse...

Este e o documentario do Cobain (About a Son) foram da smelhores coisas que vi no festival.

gonn1000 disse...

Concordo, e acrescentaria "Analog Days", outra bela surpresa.

extravaganza disse...

Adorei este filme e ainda acrescento: há muito boa gente por aí que deveria ver este filme :))

gonn1000 disse...

Pois, já me constou que gostaste muito. Mas também há muita gente que não deveria vê-lo, não é para todos os gostos :P

Anónimo disse...

Não vi o filme anterior do realizador, mas em relação a «Shortbus» acho que concordo bastante com o que aqui disseste. Há aqui uma visão muito humana a acompanhar o sexo explícito (o que nem sempre sucede, por exemplo, com o Larry Clark). E o humor é claramente um ponto positivo, apesar de ter preferido as investidas dramáticas, por exemplo as relacionadas com a dominatrix solitária.

gonn1000 disse...

Sim, as cenas de sexo explícito têm uma carga bem menos incómoda, ou mesmo menos escabrosa, do que algumas dos filmes de Clark.
Por acaso achei que a dominatrix era das personagens menos interessantes, talvez não tenha sido bem aproveitada.

Randomsailor disse...

Eu percebo que o final possa desagradar. Mas acho que a entrada da banda, dá propositadamente ao filme um carácter celebratório, que somado ao "desenlace redentor" torna o final (e de certa forma todo o filme) numa obra assumidamente ingénua, que celebra as relações e a sexualidade de uma forma fresca. Por isso, o final não me chateia, chateia-me mais algumas cenas menos conseguidas, e algumas opções do próprio plot que são mal resolvidas.

Abraço, fica bem:)

gonn1000 disse...

Acho que o filme não é assim tão ingénuo como o final tenta dar a entender, pelo menos não combina muito bem com algumas cenas anteriores mais provocatórias. Mas é um bom filme, dos mais frescos em cartaz, de facto.
Abraço.

Joana Amoêdo disse...

Queria tanto ter visto o Shortbus!! Gostei bastante do Hedwig.

gonn1000 disse...

O filme estreou na semana passada, ainda deve ficar uns tempos em cartaz.

Unknown disse...

Muito fresco e com uma banda sonora mais que recomendável :))

gonn1000 disse...

Ena, parece que este é consensual por aqui, hein?