domingo, abril 30, 2006

HISTÓRIAS DA VIDA REAL

Elogiado em vários festivais internacionais, “Pavee Lackeen” é a primeira experiência na realização de Perry Ogden, fotógrafo inglês que, após ter criado um álbum fotográfico, “The Pony Kids”, sobre as precárias condições de vida de algumas crianças de Dublin, decidiu apostar numa longa-metragem relacionada com esse tema.

“Pavee Lackeen” fornece assim um retrato do dia-a-dia dos Viajantes, uma comunidade irlandesa que se desloca há anos por todo o país, e Ogden centra-se especialmente em Winnie, uma rapariga de dez anos que vive com a sua numerosa família numa conturbada zona industrial de Dublin.

Aproximando-se do formato do documentário mas contendo elementos ficcionais, o filme recorre a actores não-profissionais (a protagonista e familiares são interpretados pelos próprios) que se apoiam na improvisação durante a maior parte do tempo.
“Pavee Lackeen” emana, por isso, uma vibrante carga realista, remetendo por vezes para territórios de Ken Loach ou dos irmãos Dardenne, acentuando a vertente documental destes.

A película tem mérito por recusar enveredar pelo miserabilismo que o seu material de base poderia encorajar, pois embora contenha sequências que impressionam pela considerável crueza – como aquela em que Winnie e a irmã saem à noite, ou a do lacónico desenlace – nunca perde o respeito pela dignidade das personagens nem as usa como objecto de comiseração fácil.

No entanto, se a sua plausibilidade e autenticidade são absorventes, “Pavee Lackeen” evidencia graves fragilidades, cuja narrativa desarticulada e algo arbitrária é a mais forte, o que gera não só problemas no ritmo do filme mas também quanto à discutível relevância e duração de algumas cenas.

No geral, “Pavee Lackeen” é um objecto cinematográfico desigual, pois as suas boas intenções nem sempre compensam as suas limitações, e apesar de Ogden denunciar a discriminação e a pobreza de que os Viajantes são alvo, apresenta um olhar que deixa demasiados espaços em branco quanto aos modos de vida e cultura desta comunidade (nem sequer chega a perceber-se se a mãe de Winnie trabalha). Não deixa de ser uma película pertinente e meritória, ainda assim.
E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

sábado, abril 29, 2006

JÁ A SEGUIR:

Mais informações aqui.

sexta-feira, abril 28, 2006

NINGUÉM SABE

Através de "No Quiero Volver a Casa" (2000) e "Los Rubios" (2003), Albertina Carri impôs-se como uma das mais promissoras representantes do novo cinema argentino, cuja obra tem sido alvo de aclamação internacional e a aponta como uma cineasta a seguir.

"Géminis" (2005), a sua terceira longa-metragem, sugere novamente que Carri é um nome a juntar à lista de realizadores relevantes, ao proporcionar um retrato de uma família da classe média que, sob a capa de uma aparente normalidade, é vincada por segredos reprimidos e dolorosos.

Carri concentra essencialmente o seu olhar em Lucia, a mãe - que ao tentar instalar um clima de bem-estar na sua família de forma tão convicta acaba por se distanciar desta - e em dois dos filhos, Jeremias e Meme, cuja forte proximidade e cumplicidade os conduz a uma relação incestuosa.

Mantendo esse relacionamento à revelia dos restantes elementos da família, os dois adolescentes refugiam-se um no outro perante a indiferença de um pai ausente e a fixação da mãe por uma realidade de aparências e uma felicidade artificial, contudo essa ligação é colocada em causa quando mais alguém passa a ter conhecimento dela.

Embora seja um drama familiar marcado por uma questão polémica, "Géminis" desenvolve-se com uma assinalável sobriedade e equilíbrio, na medida em que Carri não cede a moralismos óbvios nem opta pela denúncia de um cenário "escabroso", oferecendo um retrato perspicaz e ambivalente, dispensando justificações fáceis.

Apoiado numa atmosfera palpável, lânguida e insinuante, o filme contém um intenso efeito realista sustentado não só pela fluência da realização e plasticidade da fotografia, mas também pelo rigor da direcção de actores.

A veterana Christina Banegas, no papel de Lucia, consegue tornar credível uma personagem que poderia facilmente cair na caricatura, e os jovens Maria Abadi e Lucas Escariz, apesar de estreantes, emanam espontaneidade e carisma, concedendo ambiguidade e energia a Meme e Jeremias.

Esta coesão de elementos faz com que "Géminis" seja uma obra segura durante a maior parte da sua duração, mas não consegue impedi-la de se desequilibrar no desenlace, pois Carri interrompe a aura de suspense dolente que construíu até então com uma sequência previsível e espalhafatosa, bem menos subtil e enigmática do se esperaria.

A solidez da película merecia um final mais satisfatório e corajoso, mas de qualquer forma "Géminis" tem interesse suficiente se tornar numa boa surpresa, ainda que não chegue a ser um grande filme.
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

NADA A DECLARAR

“Longing” (Sehnsucht), a primeira longa-metragem de Valeska Grisebach, tem sido um dos filmes mais elogiados do cinema independente alemão dos últimos tempos, mas ao vê-lo não se percebe muito bem o motivo da aclamação.

Seguindo o dia-a-dia de um jovem mecânico dos arredores de Berlim, a película é uma ficção, por vezes próxima do documentário (pelo modo realista como capta o quotidiano de pequenas localidades e dos seus habitantes) centrada num triângulo amoroso, constituído pelo protagonista, a sua namorada e uma mulher que este conhece numa das suas missões como bombeiro voluntário.

Supõe-se que Grisebach tenta fazer do filme um introspectivo e plácido ensaio sobre a infidelidade, a falta de comunicação e a carência emocional, mas não basta filmar as personagens a trocar abraços e juras de amor, de forma agridoce mas pelo menos não enjoativa, para que esse retrato das relações amorosas seja especialmente marcante.

Mesmo que ocasionalmente a realizadora gere um ou outro momento onde a cumplicidade dos casais é bem traduzida, essas fugazes cenas não compensam a quase nula tensão dramática que o filme apresenta.
Contemplativo e caracterizado por longos silêncios – os diálogos são curtos e escassos -, “Longing” talvez pudesse ter algum interesse enquanto curta ou média metragem, mas Grisebach não parece ter muito a dizer e torna injustificáveis (e bastante enfadonhos) os seus 90 minutos de duração.

Os actores não-profissionais não ajudam, pois embora os seus desempenhos não sejam desastrosos também não conseguem conceder complexidade às suas personagens, que se tornam banais e pouco estimulantes.
Mais inócuo do que propriamente indigesto, “Longing” vê-se com algum esforço mas em contrapartida esquece-se com facilidade.
E O VEREDICTO É: 1/5 - DISPENSÁVEL

quinta-feira, abril 27, 2006

ESTREIA DA SEMANA: "A CRIANÇA"

Depois de "A Promessa", "Rosetta" e "O Filho", os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne regressam com "A Criança" (L' Enfant), o seu novo drama de contornos crus e realistas, que desta vez acompanha um jovem casal de delinquentes e a forma como lidam com o seu filho recém-nascido.
Juntamente com o filme do duo belga, é exibida a curta-metragem "A Rapariga da Mão Morta", de Seixas Santos, sobre uma adolescente com uma prótese na mão.

Outras estreias:
"Medo de Morte", de Wayne Kramer
"O Matador", de Richard Shepard
"O Veneno da Madrugada", de Ruy Guerra
"Os Produtores", de Susan Stroman

A DUPLA SOFRÍVEL

Primeira longa-metragem do japonês Nobuhiro Suwa, "2 Duo", de 1997, revela já alguns dos traços que caracterizam as obras seguintes do realizador, nomeadamente o olhar sobre a vida conjugal, o realismo impresso pelas interpretações de actores que recorrem à improvisação e uma singularidade formal, com planos fixos e longos e enquadramentos incomuns.

Em "2 Duo" o cineasta foca a relação de dois jovens, Yu e Kei, que vivem no mesmo apartamento e aí partilham uma série de momentos que tanto se aproximam de uma terna placidez e cumplicidade como de emoções à beira da combustão, onde vem ao de cima o pior de cada um deles.

À medida que o filme progride, o relacionamento do casal vai evidenciando as suas fragilidades, tornando-se cada vez mais fracturado. Suwa apresenta um duo de personagens disfuncionais, imprevisíveis e desencantadas, mas pouco empáticas, pois estão tão imersas nas suas convulsões emocionais que a sua presença se torna maçadora e por vezes mesmo irritante e penosa.

Alternando sequências centradas no quotidiano do casal com outras onde cada protagonista se expõe individualmente ao espectador (respondendo a perguntas do realizador), esta ficção com elementos documentais nunca consegue, em nenhuma dessas vertentes, fazer com que as tensões das personagens ganhem interesse, convidando a um afastamento e recusa progressivos.

Com uma narrativa elíptica que cedo se esgota, cenas maioritariamente monótonas e sem densidade e personagens cujas motivações ficam por esclarecer, "2 Duo" é um poderoso soporífero de uma hora e meia que parece ter o dobro da duração. Recomenda-se a quem sofra de insónias ou tenha paciência de chinês.
E O VEREDICTO É: 1/5 - DISPENSÁVEL

quarta-feira, abril 26, 2006

NÃO HÁ DOIS SEM TRÊS

Tal como em "2 Duo" ou "Un Couple Parfait", Nobuhiro Suwa apresenta em "M/other", de 1999, um drama intimista alicerçado no relacionamento de um casal, mas a variação deste filme é que a repentina presença de uma criança irá alterar a dinâmica do par protagonista.

Ao fim daquele que parece mais um banal dia de trabalho, Aki surprende-se ao ver que o seu companheiro, Tetsuro, chega a casa acompanhado pelo filho, Shun, revelando-lhe que este terá de passar cerca de um mês com eles devido a um acidente da sua ex-mulher. Se inicialmente Aki recebe esta novidade com alguma amargura, uma vez que não foi consultada acerca dessa decisão, a situação complica-se ainda mais através de um considerável acréscimo das suas tarefas domésticas, fruto da chegada da criança.

"M/other" fornece um retrato das tensões e contrariedades deste casal que, apesar de não apostar à partida num compromisso sério, vê-se repentinamente transformado numa família, levando a que Aki reconsidere a natureza da sua relação e também aquilo que pretende da sua vida. Sentindo-se por vezes como uma estranha na sua própria casa e revoltando-se com a inércia de Tetsuro, envolve-se numa espiral de emoções conflituosas tentando superar uma situação inesperada que não domina.

Suwa deixa os actores praticamente entregues a si próprios, uma vez que o filme não tem propriamente um argumento e antes pede que estes recorram ao improviso, o que dá a "M/other" uma conseguida atmosfera realista, pois o elenco consegue tornar a acção plausível. Makiko Watanabe, que interpreta Aki, oferece o melhor desempenho, conciliando serenidade, apreensão e entrega e proporcionando alguns momentos de intensa carga dramática.

"M/other" é um filme promissor e intrigante, mas que peca pelo excesso de duração, já que ao longo das suas duas horas e meia Suwa nem sempre é capaz de manter o interesse, perdendo-se em sequências supérfluas e demasiado longas.
O recurso a planos fixos é a espaços saturante, impondo à película uma rigidez formal que por vezes gera distância.
O resultado é um drama familiar sensível e sóbrio, com uma boa história, mas que infelizmente não é contada da forma mais entusiasmante, tornando mediano um filme que poderia atingir um nível superior.
E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

terça-feira, abril 25, 2006

O CASAMENTO É UM LUGAR ESTRANHO

No seu mais recente filme, “Un Couple Parfait”, de 2005, o cineasta japonês Nobuhiro Suwa recorre a um elenco totalmente francês para relatar o conturbado quotidiano de um casal à beira do divórcio que, após vários anos a viver em Lisboa, regressa a Paris para comparecer ao casamento de um amigo.

Casados há 15 anos, Nicolas e Marie entram em fricção constante e têm dificuldade em comunicar, mas insistem em permanecer juntos durante a viagem, partilhando os últimos momentos antes da separação.
Suwa segue-os ao longo desse período, originando um claustrofóbico e tenso retrato da intimidade (ou falta dela) e da frustração, colocando as suas personagens à beira do limite emocional mas nunca prescindindo de uma carregada sobriedade e contenção.

Dominado por cenas longas e recorrendo quase sempre a estratégicos planos estáticos, “Un Couple Parfait” é um interessante exercício sobre a crispação afectiva e os constrangimentos de uma vida a dois, onde a câmara está sempre colocada de modo a captar a vertigem dos protagonistas, implementando um seco e cortante efeito realista que a iluminação invernosa ajuda a consolidar.

Se este cuidado com as especificidades do espaço e da sua interligação com as personagens é um elemento fulcral do filme e gera algumas sequências fortes – sobretudo as primeiras no quarto de hotel -, também acaba por se tornar num dispositivo algo redundante e cansativo, proporcionando outras cenas inconsequentes ou desnecessariamente longas (em particular aquelas em que o casal está separado, como as do museu ou do bar).

“Un Couple Parfait” é assim uma película desigual, que só ganharia em abdicar de alguma palha narrativa que dilui o efeito dos bons desempenhos do par protagonista, Valeria Bruni-Tedeschi e Bruno Todeschini, quase sempre ancorados no improviso. Ela é especialmente credível, e os seus sussurros e olhares expõem a vulnerabilidade e a relutância de uma personagem em conflito, que tenta ainda reconstruir os estilhaços da sua relação em colapso.

Por vezes envolvente, noutros casos monótono e arrastado, “Un Couple Parfait” é um filme desequilibrado, de altos e baixos, que a espaços de aproxima de “5x2” (com o qual tem também em comum a actriz principal), e que embora fique um pouco abaixo do filme de Ozon é ainda um atento e revelador drama sobre as dificuldades conjugais.

E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

ESPELHO PARTIDO

Neil Gaiman e Dave McKean tornaram-se, desde os anos 80, numa das duplas mais influentes e criativas da banda-desenhada norte-americana, alargando os limites do formato e apostando numa linguagem própria, experimental e facilmente identificável.

“Mirrormask”, a primeira longa-metragem criada pelo duo (escrita por ambos e realizada por McKean) suscitava, por isso, alguma expectativa, pois se o filme fosse tão inventivo como os livros seria um título a não perder.

Infelizmente, o que a película proporciona é um amargo travo de desilusão, uma vez que fica muito aquém do que se esperaria dos nomes que nela estão envolvidos.
A temática recorrente nas novelas gráficas do duo mantém-se – as interligações entre o real e o onírico, o crescimento, a inadaptação e a diferença -, assim como um estilo visual algures entre o gótico e o surrealista que facilmente se atribui a McKean, mas estes elementos são trabalhados de forma tão superficial e formatada que dificilmente honram os pergaminhos dos seus autores.

Apoiando-se num argumento anémico e vulgar, “Mirrormask” é ainda mais prejudicado por apostar numa narrativa esquemática e linear, e os poucos momentos de alguma surpresa devem-se apenas a curiosas sequências visuais, que ilustram a realidade estranha e intrigante onde decorre a maior parte do filme.
Contudo, mesmo a nível visual o resultado é irregular, uma vez que a combinação entre animação e acção real já não é propriamente uma novidade e aqui acusa, não raras vezes, um óbvio artificialismo.

Menos misterioso e absorvente do que se exigiria a algo gerado pela dupla Gaiman/McKean, “Mirrormask” torna-se ainda mais frágil devido às suas personagens de papelão, autómatos sem intensidade que se limitam a seguir as etapas do argumento rotineiro. O filme nunca consegue implementar uma aura de tensão ou perigo palpáveis, oferecendo uma história infanto-juvenil com uma série de aborrecidas reviravoltas e enigmas, sem qualquer vibração emocional.

Vendo bem, as aventuras cinematográficas de Harry Potter, apesar de se assumirem como um claro produto industrial, acabam por nem estar muito distantes, e até têm mais doses de entusiasmo, valor lúdico e zonas de sombra do que este insípido “Mirrormask”.
E O VEREDICTO É: 1,5/5 - DISPENSÁVEL

ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE

A melhor série que passou pela TV portuguesa nos últimos anos está de volta. A quinta - e última - temporada de "Sete Palmos de Terra" já começou na 2: e parece que não vai facilitar a vida às personagens. O primeiro episódio não desiludiu, esperemos que os restantes mantenham o nível.

segunda-feira, abril 24, 2006

UMA HISTÓRIA DE INDEPENDÊNCIA

Apesar dos norte-americanos Flaming Lips serem, hoje em dia, um das maiores referências do rock alternativo actual, a banda teve que passar por um exigente e conturbado processo para atingir esse estatuto, através de um percurso evidenciado em "The Fearless Freaks", documentário de Bradley Beesley.

Desde os primeiros dias, em inícios da década de 80, em que o grupo tentava seguir os passos dos The Who com consideráveis doses de ruído e uma duvidosa atitude experimental, até às composições mais polidas e depuradas dos recentes "The Soft Bulletin" ou "Yoshimi Battles the Pink Robot", os Flaming Lips passaram por mutações tanto a nível de sonoridade como de formação, documentados num filme que recorre a imagens de concertos, videoclips e, principalmente, a declarações dos músicos, familiares e amigos.

Encarados por muitos dos seus conterrâneos como weirdos durante a adolescência, devido à imagem e som pouco comuns no Oklahoma de princípios de 80, os membros do grupo sempre adoptaram uma postura vincada pela irreverência e ousadia, como as imagens dos primeiros concertos (literalmente incendiários) podem atestar.

"The Fearless Freaks" mostra que essa personalidade, apesar de mais contida, ainda se manifesta hoje, seja pela peculiar cabeça ensanguentada que o vocalista Wayne Coyne exibe regularmente nos espectáculos ou pelo bizarro filme de ficção científica que prepara há anos nas traseiras da sua casa.

Bradley Beesley apresenta um trabalho escorreito, permitindo conhecer parte do quotidiano dos elementos da banda, centrando-se sobretudo no vocalista, que irradia um contangiante sentido de humor e gera alguns episódios divertidos e inusitados (como a cena da descrição de um assalto).

O momento mais marcante do filme, nos antípodas destes, é, contudo, o que aborda o baterista Steven Drozd, onde este revela ao espectador a sua relação com as drogas de uma forma crua e inquietante.

Embora seja uma obra que se segue com interesse q.b. e possua boas sequências, "The Fearless Freaks" não vai muito além de um nível regular, não contendo grandes inovações dentro deste tipo de documentários. Para os fãs da banda será, ainda assim, um título a ver sem reservas, já para os restantes provavelmente não passará de um objecto simpático, mas mais ou menos indiferente.
E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

domingo, abril 23, 2006

DISPOSTA A TUDO

Antes do genérico inicial de “Carreiras”, passa um aviso que indica que o filme integra o Movimento BOAA – Baixo Orçamento e Alto Astral, definindo-se como um objecto fruto de um meio de produção independente e que não receia apresentar um formato singular, não tendo sido gerado em função da lógica de mercado.

Este aspecto poderá ajudar a perceber porque é que a mais recente película do brasileiro Domingos de Oliveira exibe algumas falhas a nível técnico, pois não são poucos os momentos em que se evidencia uma realização algo amadora e a uma fraca qualidade de som.
Não se encontra aqui um trabalho formal especialmente inspirado, uma vez que os baixos custos são visíveis e não permitem grandes sequências de deslumbre estético.

Este aspecto não invalida que “Carreiras” seja uma obra a colocar de lado, pois se formalmente os resultados são apenas modestos, o filme não deixa de se debruçar em temas relevantes.

Oferecendo um incisivo e cáustico olhar sobre os conflitos da vida pessoal e (sobretudo) profissional de uma prestigiada jornalista televisiva de 39 anos substituída no emprego por uma jovem que, apesar da escassa experiência, tem uma imagem mais condizente com os padrões definidos pela empresa, o filme segue a protagonista ao longo de uma noite particularmente agitada.

Insurgindo-se contra o sistema que a acolheu e, posteriormente, recusou, Ana Laura encontra no álcool e na cocaína os aliados para a sua revolta, denunciando, através das múltiplas conversas (essencialmente telefónicas) do serão, a intolerável hipocrisia que infesta os meandros jornalismo, onde o culto do estrelato se sobrepõe à ética.

Concentrando-se na sua protagonista, que se encontra presente em todas as cenas, “Carreiras” só conseguiria despoletar a atenção do espectador caso tivesse uma actriz suficientemente credível, e nesse sentido não desaponta, já que Priscila Rozenbaum proporciona um desempenho que emana as cargas de egoísmo, astúcia, ousadia, amargura e obstinação que tornam Ana Laura numa personagem interessante de seguir, ainda que não gere grande simpatia.

E é essencialmente pela interpretação da actriz principal que a película vale, pois esta compõe uma protagonista vibrante e incansável, eufórica e à beira do colapso, e que adapta os seus valores às circunstâncias, evitando ceder à frustração.

Disparando diálogos (ou antes, monólogos) com tanto de demolidor como de irónico e agindo de forma imprevisível, Rozenbaum carrega o filme nas costas e, se não é capaz de o tornar num título acima da média, pelo menos também nunca deixa que este caia na monotonia.
E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

sábado, abril 22, 2006

MULHER À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS

“Grain in Ear”, o segundo filme de Zhang Lu, escritor e realizador chinês, é um retrato da solidão de uma mulher coreana que vive em condições precárias no arredores de Pequim e cuja subsistência depende da venda de kimchi, um prato típico da Coreia.
Com um quotidiano rotineiro e pouco próspero onde tem como companhia o seu pequeno filho e quatro amigas prostitutas, Cui Shunji vê o seu dia-a-dia tornar-se mais desesperante quando se envolve com um homem casado, relação que conduz a uma série de problemas.

Alvo de humilhação, assédio sexual e chantagem devido à sua condição feminina e de imigrante, a protagonista assume uma postura cada vez mais lacónica, fazendo de “Grain in Ear” um drama dominado por uma angústia recorrente.

Dominado por silêncios (os diálogos são apenas ocasionais), longos planos fixos e um ritmo letárgico, o filme apresenta pormenores de realização curiosos, evidenciando que Zhang Lu tem engenho para proporcionar bons enquadramentos e alguns truques visuais (as melhores sequências são aquelas onde o espectador não sabe o que se passa por detrás das paredes ou portas que o realizador foca), mas nunca consegue fazer com que as suas personagens ganhem alma.

A protagonista, inexpressiva e apática, é especialmente desinteressante, e acompanhá-la ao longo de quase duas horas é um desafio que se arrisca a afastar os espectadores menos benevolentes.
As personagens do filho e de uma das prostituas são mais conseguidas e proporcionam os pouquíssimos momentos minimamente emotivos e enternecedores (os episódios das brincadeiras ou da televisão), mas sempre que o filme volta a centrar-se em Cui Shunji o tédio instala-se, oferecendo cenas bocejantes e intermináveis.

Árido e excessivamente contemplativo, “Grain in Ear” só se liberta da monotonia já na sequência final, onde a câmara se cola à protagonista e cria uma tensão e urgência que o filme não consegue apresentar até então, ficando na memória como uma experiência cinematográfica que se arrasta e raramente seduz, embora sugira que Zhang Lu ainda pode vir a tornar-se num esteta meritório.

E O VEREDICTO É: 1,5/5 - DISPENSÁVEL

A ÚLTIMA HORA

Ecléctico e geralmente seguro, François Ozon tem vindo a consolidar-se como um dos estimáveis cineastas franceses a emergir em meados dos anos 90, cuja obra tanto incide em domínios do musical (“8 Mulheres”), do suspense (“Swimming Pool”) ou do drama intimista (“5x2”), e onde o rigor e a eficácia costumam estar presentes.

“Le Temps qui Reste”, o novo filme do realizador, é o segundo de uma trilogia dedicada à morte, iniciada com “Sob a Areia”, no entanto desta vez o foco não incide sobre uma mulher de meia idade em busca do marido desaparecido, mas antes num jovem que é confrontado com a revelação de que lhe restam poucos meses de vida, devido a um tumor raro.
Romain, fotógrafo de 31 anos, vê a sua percepção do mundo alterar-se com a perturbante notícia, reavaliando as relações com os seus familiares, colegas e namorado e mergulhando numa espiral de inquietação, dor, dúvida e medo.

Películas baseadas em doenças terminais não são propriamente algo inovador por si só, e muitas vezes geram melodramas de escassa subtileza e gritantes doses de manipulação emocional, recorrendo aos rodriguinhos mais básicos e rasteiros (como o atestam muitos telefilmes). Ozon não envereda por esta via – nem tal se esperaria - e aborda o tema e o protagonista com o respeito e dignidade que merecem, nunca os utilizando como ferramentas para a comoção fácil.

Tendo já provado ser um perspicaz observador das relações humanas, o cineasta não defrauda as expectativas e apresenta um filme sólido, depurado e contido, sustentado em atmosferas realistas geradas pela fluída realização, que novamente concilia gravidade e leveza.

Se Ozon é decisivo para que “Le Temps qui Reste” seja um filme bem-sucedido, Melvil Poupaud mostra-se igualmente determinante, surpreendendo com uma interpretação magnética e carismática.
Compondo uma personagem ambígua e que dificilmente gera empatia imediata com o espectador, o actor principal oferece um desempenho exemplar, com uma entrega comparável à de Romain Duris em “De Tanto Bater o Meu Coração Parou”, de Jacques Audiard, outro filme francês recente com um belo título e um fortíssimo protagonista.
Em vez de incentivar a pena e as lágrimas do espectador, Poupaud constrói uma personagem de temperamento difícil, arrogante e individualista, mas que aos poucos vai revelando as suas fragilidades e virtudes, expondo assim o pior e o melhor da sua humanidade.

Com uma interpretação de alto calibre e uma temática marcante – e bem trabalhada -, “Le Temps qui Reste” sugere, a espaços, ser um filme capaz de se catapultar para um patamar próximo da excelência, mas infelizmente tal não chega a ocorrer.
Por um lado, há personagens secundárias cujo relacionamento com o protagonista é demasiado fortuito e inverosímil (o casal que deseja ter um filho), por outro, o filme, apesar de envolvente e por vezes tocante, sabe a pouco, parecendo bastante curto e deixando algumas arestas por limar (a relação de Romain com os pais e a irmã merecia maior aprofundamento, assim como a sua fase de adaptação à doença).

Embora se imponha como um dos bons filmes de 2006, “Le Temps qui Reste” acaba por desiludir um pouco porque tem elementos que lhe permitiriam juntar-se ao grupo dos melhores. De qualquer forma, Ozon continua a ser um cineasta a acompanhar, e este até é o seu melhor filme a estrear em salas nacionais, assim como o mais caloroso, só é grande pena que fique a um passo do brilhantismo.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

sexta-feira, abril 21, 2006

POESIA NO ESPAÇO

Há várias décadas, um grupo de extraterrestres oriundos de um planeta submerso chegou à Terra mas, devido às sua fisionomia ser idêntica à dos humanos e de não constituírem uma ameaça para estes, encontraram aqui um novo lar, passando despercebidos junto da maioria dos terráqueos.
No entanto, até mesmo a Terra parece já estar a tornar-se um planeta em risco, colocando em causa a sobrevivência dos seus habitantes, o que leva uma equipa de astronautas a partir para o espaço à descoberta de um novo local habitável.

Este é o mote de “The Wild Blue Yonder”, uma invulgar mistura de falso documentário e ficção científica proposta por Werner Herzog, o realizador alemão que por cá gerou algum interesse devido a “Grizzly Man”, de 2005 (que também tentava alargar o espectro do cinema documental).

Intrigante e inclassificável, o filme é narrado por um dos extraterrestres, que após uma chegada pouco auspiciosa à Terra se encontra a trabalhar para a CIA e orienta o espectador durante esta estranha experiência.

Combinando entrevistas, episódios do quotidiano dos astronautas, imagens de arquivo e sequências debaixo de água, “The Wild Blue Yonder” vale sobretudo pela originalidade desta fusão e não tanto – e infelizmente - pelos resultados que daí decorrem.

Há momentos com um inteligente sentido de humor - quase todos centrados no extraterrestre loser e resignado que conduz a acção -, assim como pontuais sequências impressionantes captadas no fundo do oceano, com um impacto visual a que é difícil resistir, contudo estas situações são fugazes momentos de interesse de um filme que não consegue conciliar uma pretensiosa vertente clever com cenas de um suposto teor poético e reflexivo.

A banda-sonora criada pelo violoncelista de jazz Ernst Reijseger torna-se repetitiva, e a narrativa, ultrapassado o factor-surpresa inicial, desenvolve-se com um ritmo sonolento e preguiçoso, tornando “The Wild Blue Yonder” num exercício auto-indulgente, com tanto de ousado como de falhado.

E O VEREDICTO É: 1,5/5 - DISPENSÁVEL

quinta-feira, abril 20, 2006

2... EXTREMOS

Ontem aqui, e hoje, agora para algo completamente diferente, aqui.

Ao que parece, "Me and You and Everyone We Know", de Miranda July, a sessão que abre hoje a edição do IndieLisboa deste ano, já esgotou, e os outros filmes de hoje também devem estar concorridos.
Devo apostar em "The Wild Blue Yonder", de Werner Herzog (realizador de "Grizzly Man"), se ainda conseguir bilhete. Caso não consiga, tento arranjar já os dos próximos dias, ou não fosse este o destaque cinéfilo do momento. As críticas devem surgir por aqui amanhã, assim como no Cinema2000, para o qual vou fazer a cobertura, tal como no ano passado.
Ah, a foto acima é de "Le Temps qui Reste", de François Ozon ("5X2"), um dos filmes em exibição amanhã que promete muito.

ESTREIA DA SEMANA: "LISBOETAS"

Numa semana de estreias pouco ou nada promissoras, "Lisboetas" parece ser a única excepção. Documentário português realizado por Sérgio Trefaut, é um olhar sobre a Lisboa de hoje, percorrendo vários espaços da cidade e expondo a influência das diversas culturas que neles se relacionam, fruto da imigração que, nos últimos anos, trouxe mutações ao país e à capital. Vencedora do prémio de Melhor Filme Português no IndieLisboa de 2004 (e atenção, porque a edição de 2006 do festival começa hoje!), é uma obra a descobrir.

Outras estreias:

"Firewall", de Richard Loncraine
"Scary Movie 4 - Que Susto de Filme!", de David Zucker
"Uma Família dos Diabos", de Niall Johnson
"Vem Comigo", de Clément Virgo

quarta-feira, abril 19, 2006

O LIBERTINO

Depois de algumas obras de escasso interesse, como "Chocolate" ou "As Regras da Casa", Lasse Hallström proporcionou uma das boas - e inesperadas - surpresas cinematográficas do ano passado com "Uma Vida Inacabada", que infelizmente foi alvo de menor mediatismo do que os títulos antecessores, passando despercebida perante grande parte do público e da crítica.

Menos discreta, "Casanova" é a mais recente proposta do realizador sueco a estrear em salas nacionais (embora também seja de 2005), debruçando-se sobre parte da vida do emblemático conquistador de corações femininos.

Curiosamente, o filme não foca tanto as manobras de sedução de várias mulheres por parte do protagonista (embora esse aspecto não seja ignorado, sobretudo no início), preferindo antes desenvolver o seu contacto com a única mulher que amou, assim como os episódios que marcaram o atribulado início desse relacionamento.

Tentando ver correspondido o seu amor por Francesca Bruni, uma feminista de personalidade forte, Casanova tem de se debater também com a perseguição da Igreja, que condena as suas atitudes consideradas imorais e escandalosas, e fugir ao controlo da sua noiva, a insinuante e virginal Victoria, com quem aceitou casar a fim de limpar a sua imagem.

Comédia rocambolesca, baseada em jogos de enganos e falsas aparências, "Casanova" é uma película despretensiosa e leve, que não tenta ser um biopic historicamente correcto pois adopta um registo caricatural e de diminuto peso dramático.

Com um propósito essencialmente lúdico, o filme cumpre a sua função de gerar cerca de duas horas razoavelmente divertidas, e ainda que os gags nem sempre resultem o ritmo raramente deixa a acção cair na monotonia.

É uma obra esquemática que não acrescenta muito, mas não se pode dizer que Hallström não seja competente, uma vez que tanto o guarda-roupa como os cenários são bastante elaborados, e as paisagens de Veneza do século XVIII tornam-se ainda mais impressionantes devido ao soberbo trabalho de fotografia.

Como as personagens não passam de estereótipos, os actores também não podem oferecer grandes desempenhos, mas Heath Ledger sai-se bem no papel de conquistador nato e desenvolto, Sienna Miller cumpre como interesse romântico e Jeremy Irons encarna com eficácia um bispo sisudo e implacável.

Filme de entretenimento puro e simples, "Casanova" é um misto de comédia, aventura e romance que, apesar de efémero e longe de marcante, consegue ser satisfatório, convencendo sobretudo não por ser bom mas por não ser tão mau como poderia. Reconheça-se que, dentro dos filmes-pipoca que se disseminam pela maioria das salas, há alternativas bem menos entusiasmantes.
E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

segunda-feira, abril 17, 2006

IRMÃOS INSEPARÁVEIS

Doloroso e pungente olhar sobre a infância, a família, a solidão e o crescimento, "Ninguém Sabe" (Dare mo shiranai / Nobody Knows), do japonês Hirokazu Kore-eda, é um drama que segue o dia-a-dia de quatro pequenos irmãos abandonados pela mãe num apartamento de Tóquio.

Inspirado num caso verídico, ocorrido em 1988, é um filme simultaneamente duro e sensível, que recusa ceder às armadilhas do melodrama de puxar-a-lágrima mas que não deixa por isso de despoletar um forte impacto emocional, recorrendo a uma impressionante secura e contenção dramática.

Assentando num discreto trabalho de realização, com a câmara agarrada às quatro crianças, "Ninguém Sabe" gera uma atmosfera realista e contemplativa, vincada por silêncios capazes de emanar toda a melancolia que atravessa os muitos dias em que os protagonistas têm de sobreviver sozinhos.

Akira, o irmão mais velho, assume a responsabilidade de coordenar e gerir as tarefas da melhor forma que pode, algo que já fazia, de resto, mesmo quando a sua mãe estava presente, mas quando o dinheiro começa a escassear o apartamento torna-se num espaço cada vez mais inabitável.

Contudo, não obstante as crescentes dificuldades, o jovem quarteto mantém sempre uma surpreendente união, e a cumplicidade que liga as quatro personagens é determinante para que a angústia e o desencanto não se tornem ainda mais desesperantes.

Kore-eda capta este cenário de forma quase documental, com uma sobriedade que percorre todo o filme, mas o ritmo apaziguado da narrativa e certas sequências por vezes repetitivas fazem com que "Ninguém Sabe" nem sempre apresente a intensidade que se esperaria.

Há belíssimos momentos, como aquele em que as crianças saem de casa juntas pela primeira vez e exploram o bairro, evidenciando uma alegria e entusiasmo irresistíveis, contudo o filme é demasiado longo e disperso, com algumas cenas redundantes onde a inércia domina não só as personagens mas também o espectador.

A duração excessiva e algumas cenas cansativas não impedem, no entanto, que "Ninguém Sabe" seja uma recomendável experiência cinematográfica, abordando com seriedade uma situação difícil e apresentando quatro pequenos grandes actores que cativam pela espontaneidade e verosimilhança. Deixam, sim, a sensação de que o filme, sendo suficientemente memorável, poderia ter ido mais longe.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

sábado, abril 15, 2006

FIONA IN THE NAVY

Infelizmente o mais recente álbum de Fiona Apple, "Extraordinary Machine", pouco tem de extraordinário, mas por vezes a cantora/compositora ainda consegue proporcionar momentos à altura do registo anterior, "When the Pawn (...)". É o caso de "O' Sailor", cujo vídeo está aí ao lado. Oh Fiona...

sexta-feira, abril 14, 2006

QUANDO ELA ERA ELE

Numa altura em que as questões ligadas à orientação sexual, cada vez mais discutidas pela opinião pública, se reflectem também no cinema - de "O Segredo de Brokeback Mountain" a "Má Educação", passando por "20 Centímetros" ou "Breakfast on Pluto" -, "Transamerica", a primeira longa-metragem de Duncan Tucker, acrescenta mais uma perspectiva acerca desses domínios.

Tendo como protagonista um transsexual, Bree, cujo principal objectivo é conseguir dinheiro para fazer uma cirurgia que o torne na mulher que desde há muito sente ser, o filme dificulta ainda mais a vida à sua personagem principal quando esta descobre que tem um filho de dezassete anos que a procura, fruto de uma relação casual com uma colega universitária.

De forma a que a sua psicóloga a autorize a realizar a operação cirúrgica, Bree deverá encontrar o seu filho, Toby, deslocando-se para isso de Los Angeles a Nova Iorque, mas esta viagem será apenas o início de um percurso geográfico e emocional mais intenso e extenuante, à medida que os dois parentes vão consolidando um relacionamento difícil mas determinante para ambos.

Dramedy alicerçada em crises de identidade, tensas relações familiares, conflitos interiores e na aceitação ou rejeição da diferença, "Transamerica" é uma obra que, apesar de não inventar nada, reciclando ideias já implementadas pelo cinema independente norte-americano, consegue proporcionar um sólido estudo de personagens, onde o humor nunca se torna óbvio e o drama marca sempre pela subtileza.

O filme segue a matriz do road movie, pois as personagens vão-se revelando a si próprias e umas às outras à medida que a viagem decorre, através de uma estrutura episódica com alternâncias de tom, ora graves ora mais espirituosos, e se o desenlace não é particularmente difícil de prever, pelo caminho há algumas surpresas estimulantes, fruto dos segredos que tanto Bree como Toby escondem.

"Transamerica" tem sido especialmente destacado pela interpretação de Felicity Huffman, e percebe-se porquê. A actriz da série "Donas de Casa Desesperadas" oferece aqui uma complexa composição avessa a estereótipos e caricaturas fáceis, traduzindo com espontaneidade e vibração emocional a postura simultaneamente obstinada e relutante de Bree, num desempenho minucioso e atento a elementos como a colocação da voz ou a linguagem corporal.

Mas se Huffman é brilhante, Kevin Zegers não o é menos no papel de Toby, encarnado um jovem que tenta ultrapassar a solidão e a insegurança através da prostituição e do consumo de drogas.

Não sendo um grande filme, "Transamerica" é contudo uma obra honesta, inteligente e bem escrita, que evita sequências prontas-a-chocar, moralismos forçados, piadas ridículas e discriminatórias ou cenas de uma melancolia moribunda e pretensiosa, elementos que, noutras mãos, poderiam deteriorar a sua premissa. E não são todos os filmes que se podem dar ao luxo de revelar um realizador promissor e de confirmar uma grande actriz.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

quinta-feira, abril 13, 2006

ESTREIA DA SEMANA: "INFILTRADO"

Depois de "Ela Odeia-me", do ano passado, um dos melhores realizadores norte-americanos da actualidade, Spike Lee, regressa com "Infiltrado" (Inside Man), um thriller sobre um assalto a um dos maiores bancos nova-iorquinos.
O elenco é de alto nível - Jodie Foster, Clive Owen, Denzel Washington, Willem Dafoe, Chiwetel Ejiofor, Christopher Plummer - e os ecos do 11 de Setembro parecem continuar a marcar a obra do cineasta. Pela premissa parece que Lee percorre aqui domínios mais convencionais do que o habitual, mas nada como ver para tirar as dúvidas...

Outras estreias:

"Date Movie", de Aaron Seltzer
"Golpe a Frio", de Harold Ramis
"Hostel", de Eli Roth, realizador d'"A Cabana do Medo"

quarta-feira, abril 12, 2006

CORAGEM DEBAIXO DE FOGO

Em 2003, George Clooney estreou-se na realização com “Confissões de Uma Mente Perigosa”, filme que, apesar de promissor, era bastante desequilibrado, encontrando nas seguras interpretações e na cativante energia visual as suas únicas mais-valias.

“Boa Noite, e Boa Sorte” (Good Night, and Good Luck), nova aposta do actor (e agora também realizador) nas longas-metragens, tem sido alvo de maior mediatismo e aclamação do público e da crítica, contudo é pouco mais consistente do que o título antecessor.
Não é por falta de potencial, uma vez que esta perspectiva sobre as relações entre os media e a política tem um bom material de base – a obstinação do pivot televisivo da CBS Edward R. Murrow e da sua equipa em combater as atitudes extremistas e manipuladoras do senador Joseph McCarthy, durante uma conturbada América dos anos 50 -, contudo o projecto sai-se melhor nas intenções do que na concretização destas.

Decorrendo durante o mccarthysmo e a “caça às bruxas” (leia-se comunistas) que marcou esse período, “Boa Noite, e Boa Sorte” assume-se como filme-denúncia das ameaças à liberdade de expressão e das medidas intimidatórias – muitas vezes injustificadas – encetadas pela Comissão do Senado das Actividades Anti-Americanas, salientando o papel proeminente de alguns media, ou melhor, de Murrow e do seu programa televisivo, ”See It Now”, na divulgação ao público dessas atitudes abusivas.

Clooney é bem-sucedido no retrato de época, mergulhando nos tensos ambientes da redacção da CBS e apresentando-os de forma credível, quer através de movimentos de câmara que acentuam uma claustrofobia palpitante, da apropriada e sóbria fotografia a preto-e-branco (atravessada pelos nebulosos cinzentos do fumo do tabaco), da banda-sonora jazzística e cool de Diane Reeves e de um elenco afinado (que inclui, além do realziador, David Strathairn, Robert Downey Jr., Patrícia Clarkson ou Jeff Daniels).
O uso de várias imagens de arquivo, a maioria de McCarthy (dispensando assim um actor que o interprete), é um elemento curioso, e contribui também para a implementação de uma eficaz carga realista, com traços do cinema documental.

No entanto, “Boa Noite, e Boa Sorte” é menos entusiasmante na construção das personagens, que não passam de meros instrumentos cuja função é debitar a mensagem liberal do realizador. O talento dos actores consegue captar a atenção, mas o argumento não deixa que estes criem figuras tridimensionais, antes joguetes desprovidos de densidade.
A carga dramática é então bastante reduzida, uma vez que o espectador nunca fica a conhecer aquelas pessoas nem o que as motiva, vendo apenas corpos que carregam uma ideologia.

Além das personagens pouco convincentes, a irregularidade do filme deve-se ainda ao seu teor algo maniqueísta, uma vez que apresenta apenas a realidade vista por um dos lados, encaminhando o sentido da reflexão que pretende despoletar.
Paralelamente, a sobrecarga de informação, sobretudo nos momentos iniciais, leva a que o espectador possa ter dificuldade em assimilar de imediato tudo o que lhe é apresentado, tornando "Boa Noite, e Boa Sorte” numa película demasiado expositiva e hermética.

Clooney proporciona assim um documento meritório, mas desigual, pois apesar de colocar em jogo questões relevantes ainda hoje e não apenas na época em causa, como a ética no jornalismo, os conflitos entre informação e entretenimento ou a sugestão de similaridades entre os métodos de McCarthy e de Bush, não está estruturado da forma mais aliciante e imparcial, tornando-se tão seco e sisudo quanto o seu protagonista.
Deseja-se, então, boa (e melhor) sorte para o próximo projecto do actor/realizador.
E O VEREDICTO É: 2/5 - RAZOÁVEL

terça-feira, abril 11, 2006

E PLANOS PARA O FUTURO?

Contando já com um percurso sólido desde o seu surgimento em finais dos anos 90, os norte-americanos Death Cab for Cutie têm vindo a destacar-se como uma das estimáveis bandas a emergir de circuitos alternativos, com uma aura de culto que já não abarca apenas esferas necessariamente marginais desde que algumas canções da banda passaram a ser banda-sonora regular de séries como “Sete Palmos de Terra” e, sobretudo, “The O.C. – Na Terra dos Ricos”.

“Plans”, de 2005, é reflexo desse considerável alargamento de público, pois é o primeiro registo do grupo editado por uma major, a Atlantic, após quatro álbuns impulsionados pela independente Barsuk.
Coincidência ou não, essa mudança de editora é paralela a algumas alterações na sonoridade do projecto, que embora continue a apostar num indie rock de travo intimista e confessional apresenta aqui canções que nem sempre traduzem uma personalidade muito vincada.

Esse aspecto passa despercebido na faixa de abertura, “Marching Bands of Manhattan”, que começa de forma apaziguada e vai edificando um convincente crescendo de intensidade, não muito distante de alguns momentos do anterior registo, “Transatlanticism”.
“Soul Meets Body”, o tema seguinte, é ainda mais satisfatório, proporcionando cerca de quatro minutos de pop uplifting e encantatória, com uma melodia viciante que convida a audições sucessivas e entrando directamente para a lista de composições mais brilhantes da banda.
Infelizmente, como as restantes canções evidenciam, este é o único episódio de elevada inspiração do disco, uma vez que em nenhuma outra faixa “Plans” consegue alcançar este nível.

A maioria das canções do álbum envereda antes por territórios midtempo, raramente efectuando desvios a domínios sóbrios e contidos, o que não é desagradável mas está longe do mais estimulante que o grupo já fez (aproximando-se, a espaços, da limitada densidade de uns Coldplay).
“Soul Meets Body” acaba até por destoar neste cenário, tendo mais em comum com o soberbo “Give Up”, dos Postal Service (projecto paralelo do vocalista Ben Gibbard), do que com “Plans”.

Se às primeiras audições o disco não é particularmente sedutor, pecando por conter canções aparentemente mais genéricas e formatadas do que se esperaria, aos poucos há pormenores de escrita e de instrumentação que se vão impondo e apelando a que se dê o benefício da dúvida, até que “Plans” se torna menos indiferente e mais acolhedor.

A sua homogeneidade e ocasionais momentos monocórdicos – fruto de uma produção demasiado polida - continuam a jogar contra si, mas temas como “I Will Follow You Into the Dark” (com um romantismo seco e distanciado), “Brothers on a Hotel Bed” (cuja ligação da percussão e piano gera uma envolvente atmosfera melancólica) ou “What Sarah Said” (talvez o ponto mais triste e amargurado do álbum) acabam por comprovar que os Death Cab for Cutie ainda são, afinal, capazes de proporcionar emotivos retratos das relações humanas.

Explorando as ligações entre o amor e a morte, onde a passagem do tempo e, consequentemente, o envelhecimento ocupam uma influência determinante, as letras de Gibbard são, muitas vezes, mais intrigantes do que as estruturas das canções, que não assumem grandes riscos.
A carga dramática que a voz do cantor/compositor comporta também contribui para que “Plans” volte a ser alvo de mais audições, originando uma ressonância emocional que ao primeiro impacto poderá ser pouco evidente.

Sendo melhor do que aparenta ao início, o quinto disco dos Death Cab for Cutie não deixa de acusar alguma estagnação da banda, à semelhança do que ocorreu com os R.E.M., em “Around the Sun”, ou com os Mercury Rev, em “The Secret Migration”, outros exemplos interessantes, mas longe de arrebatadores, de uma indie pop outonal, contemplativa e discreta. O resultado não compromete, mas aguardam-se planos de reinvenção.
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

segunda-feira, abril 10, 2006

MÚSICA NO CORAÇÃO

Um dos músicos norte-americanos mais influentes e singulares das últimas décadas, Johnny Cash faleceu em 2003 mas deixou como legado uma vasta obra que edificou ao longo de décadas, aliando simplicidade e personalidade e expandindo os horizontes da música country.

Sendo uma figura de culto, as ideias para um filme inspirado na sua vida já circulavam há anos nos bastidores de Hollywood, mas foi James Mangold quem se encarregou de dar seguimento ao projecto e narrar o percurso do cantor/compositor no grande ecrã, em “Walk the Line”.

Sendo um realizador capaz de criar, por vezes, filmes com substância e alguma criatividade (“Vida Interrompida”), Mangold também tem na sua filmografia películas que poderiam ter sido dirigidas por qualquer tarefeiro (“Kate e Leopold”, “Identidade Misteriosa”), tornando-o num nome arriscado para gerar um filme em torno de Cash (para academismo, já bastou o de Taylor Hackford em “Ray”).

Felizmente, em “Walk the Line” Mangold volta à boa forma e apresenta um trabalho sólido que não envergonha ninguém, e embora se confirme que a inventividade e a ousadia não são o seu forte, o registo clássico que adopta aqui é bastante adequado.

Se, por um lado, o filme segue o formato do biopic tradicional, ao focar uma história de triunfo sobre a adversidade (neste caso, os problemas familiares e a dependência do álcool ou de drogas), com um enfoque larger than life e uma estrutura episódica, exibe alguns desvios ao não relatar toda a vida de Cash (centra-se essencialmente nas décadas de 50 e 60 e ignora os últimos anos do músico) e, sobretudo, ao conceder uma relevância primordial ao relacionamento do protagonista com a também cantora June Carter.

Este último elemento é determinante e responsável por “Walk the Line” ser um filme acima da média, pois até ao momento em que Johnny e June se aproximam a película não é mais do que um biopic convencional e indistinto, onde Mangold tenta mas raramente consegue injectar alguma alma às cenas.
O filme demora a arrancar e só o faz quando a relação profissional e pessoal dos dois músicos começa a ganhar mais espaço, impondo-se como o aspecto nuclear da película.

É certo que há por aqui sequências com interessantes olhares sobre a América rural, a música ou a aura de outcast que envolvia Cash, contudo os momentos de maior carga dramática são aqueles onde a cumplicidade entre os dois amantes é a única solução para suplantar situações conturbadas.

Sem boas interpretações, a história de amor dificilmente seria convincente, mas neste caso tanto Joaquin Phoenix como Reese Witherspoon são excelentes, compondo figuras tridimensionais e ambivalentes e gerando uma química invejável.
Phoenix não precisa de mais do que alguns olhares e expressões certeiros para evidenciar um âmago denso e pleno de convulsões, e Witherspoon é admirável ao encarnar uma June Carter com uma força e optimismo contagiantes, justificando o Óscar de Melhor Actriz que arrecadou pelo seu desempenho.
As prestações da dupla são ainda dignas de nota porque os actores interpretaram as muitas canções que surgem no filme, sendo o resultado muito consistente e promissor.

Entre o musical e o melodrama, “Walk the Line” é um recomendável biopic centrado numa história de amor contada de forma adulta e envolvente, onde mais do que uma sequência de acontecimentos se privilegia descobrir e mergulhar no universo interior de duas personagens bem construídas. Um dos filmes a incluir na lista de boas surpresas de 2006, portanto.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

domingo, abril 09, 2006

UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA

Vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro deste ano, “Tsotsi” é a terceira longa-metragem do sul-africano Gavin Hood e retrata o quotidiano de um jovem de um bairro pobre de Joanesburgo que vive uma rotina marcada pela delinquência até ao dia em que, após um dos seus assaltos, se vê obrigado a fazer escolhas que orientarão uma mudança no seu rumo.

Ao roubar um carro, disparando à queima-roupa sobre a sua dona, Tsotsi (termo do calão local utilizado para designar um gangster/marginal) apercebe-se que raptou inadvertidamente o filho da sua vítima, um bebé cuja inocência e vulnerabilidade lhe resgatam memórias quase esquecidas e o obrigam a reflectir acerca da sua conduta.

Mais uma história sobre a redenção? Também, mas o filme não só trabalha o tema de forma competente como não se esgota nele, fornecendo um olhar cru e directo sobre o dia-a-dia dos guetos e das tensões urbanas, gerando um drama de travo realista dominado por uma densa amargura que não impede, contudo, o surgimento de ocasionais sinais de esperança e episódios de algum humor.

Hood aborda com sensibilidade a necessidade de pertença, a insegurança, a solidão, a identidade e o instinto de sobrevivência, questões indissociáveis do relutante protagonista que pouco mais conhece do que os quase inevitáveis ciclos de violência que o orientam desde muito novo.
Embora “Tsotsi” ameace cair, por vezes, no pantanoso território da manipulação emocional, tal nunca chega a ocorrer, pois ainda que haja alguns desequilíbrios na gestão da carga dramática Hood consegue proporcionar um filme honesto e com uma evidente entrega.

O elenco, constituído por actores inexperientes, partilha o empenho do realizador, oferecendo interpretações credíveis e dedicadas, contribuindo para o reforço da carga realista que a película emana.
A fluidez da câmara de Hood ajuda a imprimir essa espontaneidade, e a fotografia de cores vibrantes origina um impacto visual próximo do que Fernando Meirelles apresentou no marcante “Cidade de Deus”, bons elementos que compensam alguma previsibilidade e simplismo do argumento e um ritmo nem sempre absorvente.

No geral, “Tsotsi” é um filme interessante e revelador, e apesar dos seus desequilíbrios funciona enquanto um acutilante retrato de realidades muitas vezes ignoradas, sem nunca abdicar das complexidades da esfera humana ao desenvolver a história do seu protagonista. Uma proposta de bom cinema que não merece passar despercebida.
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

quinta-feira, abril 06, 2006

SATURDAY NIGHT INDIE

O festival promete, a festa de antecipação também... :)

ESTREIA DA SEMANA: "INSTINTO FATAL 2"

A sequela do filme com o descruzar de pernas mais famoso da história do cinema chega finalmente a salas nacionais, catorze anos depois do controverso thriller de Paul Verhoeven que apresentou ao mundo a insinuante Catherine Tramell, interpretada por uma Sharon Stone no pico da sua carreira.
"Instinto Fatal 2" (Basic Instinct 2) dá continuidade às perigosas manobras de sedução da obscura escritora, que desta vez não lida com Michael Douglas mas com David Morrissey (quem? não interessa, não é por ele que alguém irá ver o filme...). A realização fica agora a cargo de Michael Caton-Jones. Enfim, o que vale é que para a semana estreiam os novos de Spike Lee e Eli Roth...

Outras estreias:

"Antárctida da Sobrevivência ao Resgate", de Frank Marshall
"Como Despachar um Encalhado", de Tom Dey
"Ultravioleta", de Kurt Wimmer (o realizador de "Equilibrium")

quarta-feira, abril 05, 2006

terça-feira, abril 04, 2006

VIGIAR E PUNIR

À semelhança dos seus conterrâneos Kim Ki-duk ou Park Chan-Wook, Kim Jae-woon é um dos realizadores que, nos últimos anos, mais tem contribuído para a divulgação do cinema sul-coreano além-fronteiras, como o atesta, sobretudo, “A Tale of Two Sisters”, de 2003, o seu filme mais mediático e aclamado.

“Doce Tortura” (Dalkomhan insaeng / A Bittersweet Life) é outro título que o coloca na lista de cineastas orientais do momento, uma história amarga sobre os dilemas de um reputado guarda-costas que não olha a meios para atingir os fins mas cujo profissionalismo é posto em causa quando se apaixona pela namorada do patrão, que se comprometeu a seguir e proteger.

À medida que vigia e interage com a cativante Heesoo, o frio e austero Sun-Woo toma contacto com as suas emoções, até então reprimidas, e não consegue matar a jovem quando descobre que esta trai o seu patrão com um amante. Tal atitude não passa despercebida perante o seu chefe e colegas e torna o protagonista num alvo a abater, despoletando uma espiral de tensão, perseguições, desilusões e algum sadismo.

Embora o ponto de partida do filme possa parecer simplista, Kim Jae-woon sabe como construir um vibrante retrato de sangue, suor e lágrimas, valendo-se de personagens que, sem fugirem muito aos estereótipos, são adequadas e razoavelmente trabalhadas, mas convencendo especialmente pela impressionante energia visual que insere tanto nas sequências de acção (e são muitas e bem coreografadas) como nas mais introspectivas e pausadas (relevantes para a exploração do conflito emocional de Sun-Woo).

Conciliando traços do thriller, film noir ou mesmo western, “Doce Tortura” nem sempre se desenvolve de forma interessante – a primeira das duas horas falha em conseguir envolver a espaços -, mas possui cenas muito inspiradas, como as do massacre do protagonista por parte de uma dezena de antagonistas, filmadas com um arrojo e um nervosismo de tirar o fôlego, assim como as do portentoso desenlace, outro requintado concentrado de energia cinética.

A acentuada estilização da violência tanto se aproxima da saga “Kill Bill - A Vingança”, de Quentin Tarantino, da trilogia “Infiltrados”, de Andrew Lau e Alan Mak, ou de “Oldboy – Velho Amigo”, de Park Chan-Wook, ainda que “Doce Tortura” contenha méritos próprios e consiga valer por si, fruto da criatividade da câmara de Jae-woon, das não menos hipnóticas fotografia e banda-sonora e do carisma do actor principal, Lee Byung-heon. O balanço é assim positivo e saúda-se esta boa surpresa vinda do cada vez mais profícuo cinema oriental.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

segunda-feira, abril 03, 2006

AMOR E OVELHAS

Alvo de uma considerável divulgação mediática que o levou a ser objecto de polémica devido ao limitado rótulo de western gay, “O Segredo de Brokeback Mountain” (Brokeback Mountain) é mais denso do que essa fácil catalogação pode sugerir, apresentado a bela e melancólica história da relação de dois cowboys, vincada pela amizade, cumplicidade e amor.

Baseado num conto de Annie Proulx, o mais recente filme do taiwanês Ang Lee não é o manifesto gay com que muitos parecem querer catalogá-lo mas antes um sensível e complexo melodrama enraizado nas relações humanas, território que o realizador já provou ser capaz de explorar com solidez, inteligência e sobriedade, situação que aqui se manifesta novamente.

Após o aclamado e influente “O Tigre e o Dragão” e o subestimado, mas não menos interessante, blockbuster intimista “Hulk”, Lee afasta-se aqui de domínios ligados ao cinema de aventuras (inspiradas em lendas orientais ou em heróis dos comics norte-americanos) e oferece uma obra pontuada pelas dificuldades dos relacionamentos, temática já explorada, por exemplo, em “Comer Beber Homem Mulher” ou “A Tempestade de Gelo”, mas não desta forma.

Retrato do absorvente afecto que nasce entre dois jovens contratados para guardar rebanhos durante o Verão de 1963 num rancho do Wyoming, a película desenvolve-se com assinalável noção de tempo e espaço, mergulhando na profunda ligação que os protagonistas constroem e nos entraves que a marcam ao longo de duas décadas.

Os episódios iniciais do filme, decorridos em Brokeback Mountain, são especialmente conseguidos, uma vez que deixam o duo entregue a si próprio e a uma solidão que se deteriora à medida que a empatia mútua cresce, o que suscita momentos de forte carga emocional e poética a que não é alheia a brilhante fotografia de Rodrigo Prieto, capaz de captar de forma ímpar a imponência e grandiosidade das paisagens.

Essa singular aura, onde o bucolismo e o lirismo se aliam à candura e ingenuidade, já não se encontra presente nos restantes momentos do filme, quando a dupla se separa reunindo-se apenas esporadicamente à revelia das suas esposas, mas nem por isso “O Segredo de Brokeback Mountain” deixa de proporcionar sequências de raro impacto emocional, mantendo um equilíbrio e uma subtileza dignos de nota.

Embora aborde a homossexualidade, questão que, para o bem e para o mal, é sempre associada à película e motivou a sua divulgação massiva, Ang Lee adopta uma perspectiva contida e discreta, recusando exibicionismos gratuitos e estando, assim, nos antípodas de um filme-choque.
Mais do que temas, o cineasta preocupa-se em explorar as ambiguidades e contradições das suas personagens e o resultado é bastante convincente, não só devido a um argumento bem trabalhado, que privilegia as inquietações humanas, mas também a uma soberba direcção de actores, com obrigatório destaque para os protagonistas.

Jake Gyllenhaal tem um desempenho brilhante na pele do idealista e obstinado Jack Twist, confirmando-se, mais uma vez, como um dos melhores actores da sua geração, mas o underacting de Heath Ledger, que encarna o circunspecto e lacónico Ennis Del Mar, é igualmente seguro, o que não se esperaria tendo em conta que o actor nunca havia interpretado um papel tão exigente (fruto dos projectos de escasso interesse em que participou).

Com duas personagens tão bem construídas e melhor interpretadas, era difícil “O Segredo de Brokeback Mountain” falhar, já que a rara entrega e intensidade que os dois actores incorporam em Ennis e Jack compõem a alma do filme e compensa alguns dos seus aspectos menos conseguidos, como o desenvolvimento algo superficial dos secundários, em particular o das esposas, que pedia mais relevo (apesar das competentes prestações de Michelle Williams e Anne Hathaway).

Rigoroso na concepção da narrativa, no retrato da América rural e dos dilemas conjugais, Ang Lee imprime ao filme um ritmo pausado, mas nunca monótono, enveredando por uma vertente contemplativa reforçada por uma hábil gestão dos silêncios e do peso da palavra.

Apenas uma cena soa a falso, aquela em que os dois amigos se reencontram pela primeira vez depois de terem partilhado a experiência de Brokeback Mountain, momento decisivo no desenvolvimento do filme mas demasiado forçado, não condizendo com a verosimilhança que se sente em todas as outras sequências.

Não obstante este episódio pouco credível, “O Segredo de Brokeback Mountain” impõe-se como uma das grandes obras cinematográficas de 2006, gerando um cru, emotivo e angustiante retrato da natureza humana, da infidelidade, do preconceito, da repressão emocional, dos laços de confiança e do amor proibido. Pode não ser o melhor filme do ano, mas tem lugar cativo na lista dos obrigatórios, de preferência não pela controvérsia que gerou mas pela qualidade acima da média que evidencia.

E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM

sábado, abril 01, 2006

DREAM TEAM

Os Radiohead revelaram finalmente uma das novidades do seu novo álbum, cuja edição está prevista para o final deste ano. A banda de culto confirmou que Celine Dion participou em dois temas do disco, em duetos com Thom Yorke que já circulam pela Internet.

“Foi uma grande honra ter sido convidada, gosto deste projecto desde o “Pablo Honey” – que ainda é a obra-prima - e desde logo senti que as nossas canções tinham muito em comum. Além disso, sempre tentei apoiar as pequenas bandas, sobretudo aquelas que se inspiram nos Coldplay, que amo de paixão.”
O vocalista do grupo concordou, afirmando que “Celine é uma referência, talvez a maior da nova cena de músicos canadianos como Bryan Adams ou Alanis Morissete. Uns jovens chamados Arcade Fire quiseram colaborar connosco no novo disco, mas nunca gostámos de bandas estranhas e pretensiosas, principalmente das que tentam, sem sucesso, imitar o Meat Loaf.”
Na sequência da revelação da colaboração, surgiram rumores sobre um relacionamento amoroso entre os dois cantores, embora Dion tenha salientado que o seu noivado com Tom Waits continua estável.