terça-feira, novembro 16, 2004

UMA VIDA A TRÊS

Hábil e perspicaz na captação das nuances e complexidades das relações humanas, Michael Cunningham prova que o seu talento como escritor não se esgota no célebre "As Horas" (o seu livro mais mediático, cuja fama foi auxiliada pela adaptação cinematográfica gerada por Stephen Daldry em 2002).

"Uma Casa no Fim do Mundo" (A Home at the End of the World) inclui retratos do turbilhão emocional de um trio de protagonistas, interligados através de laços de amor e amizade. A história centra-se na relação de Jonathan e Bobby, que forjam uma profunda amizade na infância e se reencontram ao entrarem na idade adulta. À conexão dos dois rapazes será adicionada a presença de Clare, o terceiro elemento deste triângulo, com quem os dois amigos partilharão o lar. Esta intrincada e pouco convencional relação será a base de um novo tipo de família que os três tentarão sedimentar, à qual se acrescenta ainda Alice, a mãe de Jonathan, e um inesperado bebé.

Narrado na primeira pessoa por Jonathan, Bobby, Clare e Alice, o percurso destas personagens colide em diversos momentos e toca em questões como as fronteiras entre a amizade e o amor, estilos de vida contraditórios, ambiguidade sexual ou tensão familiar.

Michael Cunningham convida-nos a entrar no universo interior de cada um dos protagonistas, encetando uma viagem pelas oposições e convulsões humanas, ambientes de solidão e processos de adaptação. Esta visão do âmago das personagens revela-se mais aprofundada na primeira parte do livro, quando Jonathan, vulnerável e indeciso, e Bobby, misterioso e circunspecto, se conhecem na entrada da adolescência e tentam descodificar o mundo em conjunto.

Essa riqueza emocional já não se encontra tão presente na descrição do reencontro dos dois amigos anos mais tarde, e a forte interligação de ambos é, infelizmente, relegada para segundo plano. É pena que o autor tenha seguido uma via menos arriscada e criativa na segunda metade do livro, uma vez que os relatos das experiências de Bobby, Jonathan e Clare em Nova Iorque seguem uma via mais convencional e não tão intrigante. Não é que a história não contenha ainda originalidade, mas adopta um tom mais linear e superficial, recusando mergulhar no abismo interior dos protagonistas e ficando uns furos abaixo das atmosferas iniciais da obra.

De resto, o desapontante final comprova essa perda de vitalidade da narrativa, não esclarecendo as motivações de algumas personagens e apresentando um desenlace inconclusivo. Não obstante, "Uma Casa no Fim do Mundo" situa-se acima da média e proporciona um interessante estudo de personagens, ainda que não seja a obra-prima cujo absorvente início parece prometer ("Enquanto a Inglaterra Dorme", de David Leavitt, percorre domínios semelhantes e atreve-se a ir mais longe).

O estilo de Cunningham, sóbrio, detalhado e tridimensional sem deixar de ser acessível, consegue catapultar o livro para a lista de obras recomendáveis e suficientemente viciantes, confirmando o autor como um dos nomes fortes da literatura norte-americana contemporânea. Agora só falta mesmo esperar pela adaptação cinematográfica de Michael Mayer (prevê-se a chegada a Portugal em 2005) e contrastar os resultados...

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

2 comentários:

l.s. disse...

eu tenho todos os livros d cunnigham, e adoro este. acho que o que gosto menos é (oh heresia) "As horas".

comprei o ultimo dele, specimen days, em londres. viciante, muito bom, muito bom mesmo. só lendo.

é genial a maneira como ele transporta os sentimentos para o papel.

gonn1000 disse...

É pena que a adaptação conematográfica não esteja à altura do livro :(