terça-feira, novembro 22, 2005

MELANCOLIA E TRISTEZA INFINITA

Vencedor do Prémio Regards Jeunes da Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2005, elogiado pela imprensa nacional e internacional e conseguindo números de espectadores bastante satisfatório nas salas, “Alice” tem sido defendido por muitos como um filme capaz de aliar os gostos da crítica e do público, fazendo a ponte entre o cinema de autor e comercial, algo raro no contexto cinematográfico português, cujas obras muitas vezes se situam em extremos.

E, se a película de estreia de Marco Martins expõe óbvias qualidades, corre o risco de se tornar vítima dessa valorização algo excessiva, uma vez que, apesar de bons elementos, evidencia também consideráveis limitações, sendo um trabalho interessante mas não um tour de force de recorte superior.

Colado à angústia e progressiva dilaceração emocional de um jovem casal que tenta lidar, há mais de meio ano, com o desaparecimento da filha, o filme proporciona um amargurado e soturno mergulho no sentimento de perda que daí advém, assim como no desgaste, persistência e obsessão, elementos omnipresentes no melancólico quotidiano de Mário e Luísa, para quem encontrar a pequena Alice se tornou no único objectivo das suas vidas.

Revelando a rotina do diária do duo central, “Alice” segue o percurso obstinado de Mário, que mantém há meses uma estratégia que o ajuda a não perder a esperança, registando através de múltiplas câmaras de vídeo o fluxo de pessoas em vários locais de Lisboa na tentativa de, entre os milhares de cidadãos filmados, encontrar pistas acerca do paradeiro da sua filha.

Marco Martins coloca no seu filme uma série de questões pertinentes, desde a solidão urbana vincada pelo anonimato, indiferença e falta de comunicação; o poder da imagem e a eficácia dos sistemas de vigilância ou as consequências de uma perda súbita e violenta.
Apesar de promissores, estes temas acabam por ser mais sugeridos do que eficazmente explorados, pois a narrativa circular e o argumento algo esquemático levam a que “Alice” seja uma obra cansativa e a espaços difícil, onde a rotina do dia-a-dia dos protagonistas – repetida até à exaustão – se torna previsível e monótona para o espectador.
Percebe-se o intento de reforçar a claustrofobia e tensão que contaminam o quotidiano do casal, mas tal seria mais estimulante se o filme não se perdesse num saturante piloto automático, desaproveitando o seu potencial dramático..

Esta forte limitação não impede que “Alice” cative e envolva, já que Martins é bem sucedido na direcção de actores, tanto dos secundários – Miguel Guilherme, Ana Bustorff ou Gonçalo Waddington são alguns dos nomes fortes – como dos principais. Beatriz Batarda compõe uma surpreendente encarnação do desespero e desolação e Nuno Lopes, em quem o filme se baseia durante a maior parte do tempo, tem um desempenho competente, que se revela mais conseguido nos momentos de silêncio do que naqueles marcados pelo diálogo, sendo expressivo e credível nos olhares e expressões mas não tanto na colocação da voz.

“Alice” vale também pelo soberbo sentido atmosférico, dando a conhecer uma Lisboa de tonalidades azuis e acinzentadas, expondo uma componente estilizada que se coaduna na perfeição com a aura de desilusão e tristeza que se dissemina pelo duo central (e, embora de forma não tão carregada, pelas restantes personagens), próxima de ambientes de Wim Wenders ou Jim Jarmusch.
O apuro da realização e da fotografia geram pontuais momentos de uma inspirada plasticidade e energia visual, que complementada pela delicada e comovente banda-sonora de Bernardo Sassetti conduz a sequências de antologia, que infelizmente são acompanhadas por outras onde a vertente monocórdica do argumento impera.

Frágil e desigual, “Alice” pode não ser a obra-prima que tarda a aparecer no cinema português dos últimos anos mas também está bem acima da mediocridade, sendo uma primeira longa-metragem promissora e um inquietante olhar sobre o entorpecimento emocional de dois jovens adultos perdidos numa espiral descendente.
Pena que os seus ocasionais momentos caracterizados por uma visceral carga dramática se encontrem cercados por outros que apenas geram apatia, caso contrário “Alice” poderia ter sido um filme seminal em vez de uma estreia na realização a que se dá o benefício da dúvida.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

8 comentários:

kimikkal disse...

Fico na expectativa para o segundo filme do realizador.

gonn1000 disse...

Também eu, promete bastante...

Anónimo disse...

um filme muito bom que gera um desconforto em quem vê que prova como a dimensão humana passa para o espectador (e ñ apenas a mestria artística)
sem dúvida um filme a descobrir pelos Portugueses!

gonn1000 disse...

A mim a dimensão humana não me pareceu tão evidente (a execução não foi das melhores), mas não nego a mestria artístia.

Anónimo disse...

Gonn1000, parabéns por seres dos poucos a partilhar uma opinião semelhante á minha, relativamente a este "Alice". Foi muito sobrevalorizado...tenho dito :P!

Abraços.

gonn1000 disse...

Pois foi, tem as suas qualidades mas obras-primas há poucas...

Flávio disse...

A propósito da Alice, escrevi no meu blogue que o teatro é um meio mais favorável ao trabalho dos actores que o cinema. Curiosamente, toda a gente fica muito espantada quando digo isso, que me parece ser uma evidência: em teatro, há só o actor e o público, mais nada; em cinema, há câmara, luz artificial, cabos e obstáculos por todo o décor e um realizador aos berros. DUH!

gonn1000 disse...

Bem , acho que isso é bastante relativo, embora as diferenças da relação entre actores e público sejam óbvias. Mas mesmo assim, os filmes do movimento Dogma, por exemplo, vão contra esse "artificialismo" do cinema que o teu comentário sugere.