terça-feira, outubro 03, 2006

PERSEGUIDO PELO PASSADO

Com uma filmografia com tanto de idiossincrática como de pouco consensual, Kevin Smith tem cimentado um percurso singular (e irregular) dentro de domínios do cinema independente norte-americano, apresentando filmes sempre centrados nos subúrbios de Nova Jersey que, por detrás de doses de um humor ácido e politicamente incorrecto, oferecem retratos dos dilemas colocados a uma geração que se prepara para entrar na idade adulta.

Tem sido assim desde a sua primeira longa-metragem, "Clerks" (1994), e volta a sê-lo na mais recente, "Nunca Tantos Fizeram Tão Pouco" (Clerks 2), a sequela desse modesto mas marcante filme que se tornou num dos marcos indie da década de 90.

Se por um lado cada filme do realizador tem uma série de elementos que o tornam facilmente reconhecível (com a eventual excepção de "Era Uma Vez... Um Pai", que pisa territórios mais convencionais), não é menos verdade que cada uma das suas novas propostas tende a não oferecer grandes acréscimos ao seu (micro)universo, apostando no mesmo tipo de personagens, ambientes e modelos, com melhores (o sobrevalorizado, mas sensível "Perseguindo Amy") ou piores resultados (o pretensioso e cansativo "Dogma").

"Nunca Tantos Fizeram Tão Pouco" não é excepção, com todos os defeitos e virtudes que essa formatação acaba por trazer. Mais uma vez há diálogos ora bizarros e hilariantes, ora surpreendentemente sinceros, envolventes e plausíveis, que tanto incidem em discussões sobre a cultura pop - desde as trilogias d'"0 Senhor dos Anéis" e d'"A Guerra das Estrelas" aos Transformers -, como se debruçam sobre o racismo, banalidades do quotidiano suburbano, Anne Frank e, claro, sexo, tema que oferece alguns dos momentos mais divertidos (irresistível, a sequência que alia anões à sexualidade feminina).

Ocasionais cena de gosto duvidoso aproximam o filme de exemplos de comédias sobre adolescentes não muito recomendáveis, e mesmo quando se pensa que é impossível ser mais boçal e esgrouviado Smith prova que se pode ir mais além, como numa sequência decisiva e antológica, já perto do desenlace.
Porventura pueris e excessivos, por vezes difícies de aceitar, estes momentos são já parte do estilo do realizador, e não deixa de ser ousado conciliá-los com outros vincados por uma inesperada maturidade, onde a escrita de Smith gera inspiradas reflexões sobre a complexidade das relações humanas.

"Nunca Tantos Fizeram Tão Pouco" é assim um filme desequilibrado, mas que resulta, sobretudo para aqueles minimamente familiarizados com as suas personagens, que regressam mais de dez anos depois de "Clerks", onde tudo começou. Recupera-se assim tanto a dupla de losers balconistas Dante e Randal, agora já não numa loja de conveniência mas num restaurante de fast-food, como os indescritíveis e já icónicos Jay e Silent Bob, estes últimos presenças recorrentes nas películas de Smith.
Além destas, há cameos dos habituais Ben Affleck e Jason Lee e presenças novas como o inocente e tímido Elias, um perfeito contraponto cómico para Randal, ou Becky, a gerente do restaurante que mantém uma relação ambígua com Dante e é interpretada por uma carismática Rosario Dawson.

O filme irá provavelmente agradar seguidores de Smith mas arrisca-se a não ter tanto impacto junto dos que desconhecem a sua obra, uma vez que poderão sentir-se algo descoordenados nesta película com sabor a reencontro de velhos amigos, onde de resto o novo milénio parece ainda não ter chegado, pela forma como a (sub)cultura slacker, tão anos 90, ainda se encontra presente (e não hão-de ser muitos os filmes dos dias de hoje com canções como "Misery" dos Soul Asylum ou "1979" dos Smashing Pumpkins na banda-sonora).
Mesmo assim, e apesar de Smith já não ter a frescura da estreia, "Nunca Tantos Fizeram Tão Pouco" é ainda um título a ver, situando-se uns furos acima da maioria das comédias juvenis que chegam do outro lado do Atlântico.
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

16 comentários:

kimikkal disse...

Muito sinceramente acho que é mais do mesmo, talvez algo a ser visto em DVD...maybe.

12 anos é muito tempo, se esta sequela surgisse há 8 anos ainda teria a sua piada, agora...

gonn1000 disse...

Também não esperava muito, e isso talvez tenha jogado a favor do filme, já que superou as expectativas. De qualquer forma, mesmo não sendo um grande filme, também não dei o tempo por perdido ao vê-lo.

Carlos M. Reis disse...

Gonçalo, se for possível disponibiliza-me o teu mail. Cumprimentos!

gonn1000 disse...

Tenho-o no profile, é gonn1000@hotmail.com. Cumprimentos.

Carlos M. Reis disse...

E-mail enviado Gonçalo.

Cumprimentos.

gonn1000 disse...

Já vi e respondi. Fica bem.

Loot disse...

Quero ver se consigo ir ver esta semana, sou grande fã do primeiro, vi os filmes todos dele excepto o Jersey Girl, e acho o Clerks o melhor. Espero não me desiludir com este segundo.
O Chasing Amy também é um dos melhores, quanto ao dogma acho que tem uma muito boa primeira metade, mas o pior dele é capaz de ser o Jay and silent bob strike back.

gonn1000 disse...

Sendo assim, acho que não vais desiludir-te com este, achei que era superior aos mais recentes do Smith.

Wellvis disse...

Para mim, o melhor de todos é o subestimado "Mallrats" (no Brasil, "barrados no shopping" um trocadilho tonto com uma história muito longa para explicar agora..) e que tinha a actriz da série Beverly hills 90210, em auto-paródia. Completamente insano e original, este para mim, é o melhor dele. E "Clerks II" é um desastre total.

gonn1000 disse...

Esse não cheguei a ver, mas conheço a premissa. "Clerks II" foi bem melhor do que esperava, acho que há por aí desastres bem maiores.

Loot disse...

Fui hoje tentar ver ao alvaláxia mas o filme já não estava em exebição, que azar.
Eu vi o Mallrats e acho que o Clerks é de longe muito superior, mas é uma questão de gostos.

gonn1000 disse...

Já nem no Alvaláxia? É pena, mas infelizmente não me surpreende.

Loot disse...

Eu também demorei a descobrir que o filme já tinha estreado em portugal,um pouco por culpa do título. Mesmo assim tenho ideia que não esteve muito tempo em exibição. Sabes se ainda se encontra em algum cinema?
Acabei por ir ver o filme que o substitui o Little Miss Sunshine, e gostei bastante, Steve Carell tá a subir.

gonn1000 disse...

Não esteve muitas semanas, não, e acho que já não está em nenhuma sala de Lisboa. "Little Miss Sunshine" (traduzido para "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos", mais uma preciosidade...) ainda não vi, mas está na lista.

atomo! disse...

Percebo que o homem seja uma "montanha russa" e que os filmes do Smith tenham tanto culto como conseguem geram ódio, mas esse pós-John Hughes ainda consegue fazer filmes com referencias que mais ninguém usa. Excelente

gonn1000 disse...

Sim, que tem um estilo próprio parece-me óbvio, mas nunca acho quetenha alcançado a excelência. Mas se continuar a fazer filmes como este, ainda valerá a pena estarmos atentos.