Longe da tensão e paranóia fim-de-milénio dos superlativos "O Jogo" ou "Clube de Combate", esta é uma película que revela menor ousadia formal, não sendo um exercício de ruptura mas antes uma obra que se suporta nos cânones do policial sem contudo deixar de evidenciar a mestria que distingue um cineasta rigoroso de um mero tarefeiro.
A marca de Fincher continua presente, pois mesmo sem grandes tentativas de desconstrução "Zodiac" é uma experiência cinematográfica densa e consistente. Desta vez, o argumento surpreende não pelo facto de oferecer reviravoltas mirabolantes ou assentar numa narrativa que descoordena o espectador, mas antes pelo facto de apostar numa linearidade que não deve, contudo, ser confundida com ligeireza ou convencionalismo, já que o realizador mostra, talvez como nunca antes, um olhar minucioso sobre a realidade que retrata, naquele que é o seu filme mais cerebral.
Essa sobriedade manifesta-se também na componente visual, distante do grotesco sofisticado de alguns momentos de "Se7en - Sete Pecados Mortais" ou da energia cinética hi-tech de "Clube de Combate" e "Sala de Pânico". A vertente experimental do cinema de Fincher - que, recorde-se, tem um passado ligado à publicidade e videoclips - volta contudo a demarcar-se através do recurso à câmara digital Thomson Viper, que potencia um absorvente jogo de luz e sombra nas cenas nocturnas, por vezes aproximando-se das paisagens de outro esteta norte-americano, Michael Mann, e nesse campeonato "Zodiac" nada fica a dever a "Colateral" ou "Miami Vice".
O cineasta afirmou que pretendeu manter-se o mais próximo possível da forma como as investigações dos assassinatos decorreram, seguindo de perto os dois livros de um dos investigadores, o cartoonista Robert Graysmith, e isso é palpável ao longo do filme. O espectador é assim poupado a cenas onde a sua suspension of desbelief é ameaçada, já que as sucessões da acontecimentos são quase sempre plausíveis e factuais, e o realizador nunca lhe tira o tapete debaixo dos pés, ao contrário do que ocorre na maioria dos títulos da sua filmografia.
Este aspecto talvez ajude a explicar o relativo falhanço da película nas bilheteiras norte-americanas, uma vez que "Zodiac" é um policial pausado e meticuloso, onde a intensidade não provém de dinâmicas sequências de perseguições ou tiroteios nem de um banal exercício whodunit mas do estado obsessivo que se vai ocupando progressivamente dos seus protagonistas.
Num thriller de actores e não de efeitos, a escolha do elenco é essencial e neste caso revela-se certeira. Jake Gyllenhaal, na pele de um cartoonista obstinado em descobrir - e provar - a identidade do serial killer, não se afasta muito do tipo de papéis pelos quais se celebrizou, o que não é um problema já que volta a aliar sensibilidade, espontaneidade e discrição, e tem ainda a vantagem da sua personagem ser a mais desenvolvida. Mark Ruffalo é também credível como detective de homicídios, ainda que o filme não lhe dê o devido espaço para atingir voos mais altos, mas quem mais convence é Robert Downey Jr, actor que a cada desempenho demonstra uma notável capacidade camaleónica e aqui repete o feito, encarnando com presença e carisma um memorável jornalista criminal.
Chloë Sevigny ou Brian Cox complementam uma sólida direcção de actores, e embora nenhum dos nomes do elenco desiluda, fica a sensação de que alguns são subaproveitados devido a um argumento que, apesar de interessante, não mergulha tanto no âmago das personagens como seria desejável.
Se a crise pessoal, familiar e profissional do cartoonista Graysmith é eficazmente trabalhada, os abismos emocionais dos outros dois protagonistas são alvo de uma abordagem algo superficial, já que o filme concede maior enfoque aos pormenores técnicos da investigação e à personagem de Gyllenhaal. Será por aqui que, não obstante as qualidades enunciadas, "Zodiac" mais falha, nunca atingindo um peso dramático que o torne no grande filme que se sabe que Fincher é capaz de fazer.
Este intrincado thriller fica, assim, uns furos abaixo de obra-primas como "Clube de Combate" mas é ainda uma proposta irrecusável, sobretudo para os apreciadores de policiais sérios e inteligentes. Mesmo com um desenlace anti-climático (atípico nas obras do realizador), encontram-se aqui duas horas e meia de suspense nada despiciendo de onde sobressai uma carga visual hipnótica - a estupenda fotografia de Harris Savides ajuda - e uma soberba reconstituição de época (ou épocas, já que a acção decorre ao longo de várias décadas mas é a de 70 que adquire maior protagonismo).
Não sendo genial, "Zodiac" é uma prova de maturidade e deixa ainda várias cenas de antologia - como a inquietante sequência inicial ao som de "Hurdy Gurdy Man", de Donovan -, motivos mais do que suficientes para saudar o regresso de um dos cineastas mais estimulantes dos últimos anos, capaz de retratar o caos urbano como poucos.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM
10 comentários:
na mousche! podia ser melhor, sendo de david fincher, mas n e mau.
Longe de mau, infelizmente também longe de excelente. Mas não desilude.
Concordo que o elenco é muito bom principalmente Robert Downey Jr. que sempre que faz um filme prova que é um dos grandes actores dos nossos tempos.
Um bom regresso de Fincher, gostei bastante deste policial meticuloso e da forma como ele escolheu abordar esta história.
A personagem do Downey Jr. podia ter sido mais desenvolvida, mas a certo ponto o filme elege a do Gyllenhaal como protagonista, que eclipsa as restantes. Mas sim, é um bom filme, o Fincher raramente falha.
Achei o filme mais ou menos. Partes interessantes e outras muito chatas e desnecessárias.
É um pouco desequilibrado, mas dentro do género é dos melhores que tem surgido ultimamente. E a câmara de Fincher continua a conseguir surpreender :)
Concordo com a tua apreciação sobre o filme. Mas na minha opinião, David Fincher conseguiu realizar o thriller policial mais envolvente, consistente e minucioso dos últimos anos, sobretudo num género onde cada vez se fazem menos filmes de qualidade. Adorei o filme, sobretudo a forma como aprofunda e explora a obsessão daqueles personagens por um enigma que deixou as autoridades "à nora" durante décadas. As interpretações são óptimas e a excelência da fotografia é evidente. A realização é impecável, e apesar de diferente dos seus outros filmes, consegue ter a marca de autor de Fincher.
Sim, tema marca de Fincher, mas o desenvolvimento das personagens é mais conseguido na do Gyllenhaal do que nas outras.
Não desgostei mas soube-me a pouco. Só me enervou um bocado é que o filme fosse publicitado nos trailers como um típico 'thriller' quando na realidade não é nada disso.
Não é mais uma obra-prima, mas quase faz figura disso entre os que têm estreado ultimamente.
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