segunda-feira, março 14, 2005

ESTRANHA NUMA TERRA ESTRANHA

Nos últimos anos, o cinema português tem abordado frequentemente um tema central da História recente do país, e que permanece ainda como um capítulo envolto em alguma controvérsia: a guerra colonial.

"Os Imortais", de António-Pedro Vasconcelos, ou "Preto e Branco", de José Carlos de Oliveira, proporcionaram algumas perspectivas sobre esse episódio, e "A Costa dos Murmúrios", a primeira longa-metragem de Margarida Cardoso, é mais um exemplo que revisita ambientes desse período. Contudo, esta estreia não é apenas mais um filme centrado na guerra colonial, uma vez que oferece um inusitado, mas cativante desvio aos típicos formatos e estruturas do género, gerando um drama introspectivo e sereno que se desenrola numa época conturbada .

Baseado no romance homónimo de Lídia Jorge, "A Costa dos Murmúrios" foca as experiências de Evita, uma jovem recém-casada que viaja para Moçambique para acompanhar o marido, Luís, que cumpre aí o serviço militar. Pouco depois de chegarem, Luís parte para uma operação militar (que se prevê ser a última, finalizando a guerra) e Evita fica sozinha, deparando-se com um cenário entre o inquietante e o hostil, envolvendo-se numa atmosfera na qual não se revê e que frequentemente questiona.

Beatriz Batarda encarna a protagonista e torna Evita numa personagem não menos intrigante do que o ambiente que a cerca, apresentando uma interpretação contida e subtil e confirmando-se como uma das mais versáteis e credíveis actrizes portuguesas da actualidade (para eventuais cépticos, basta comparar o seu visceral desempenho em "Noite Escura", num registo em tudo distante da sobriedade de Evita). Através das peripécias de protagonista e da desolação com que esta se confronta, "A Costa dos Murmúrios" vai dando conta dos absurdos e contrariedades de uma guerra sem sentido (se é que alguma o tem) e das múltiplas ressonâncias que os seus trágicos eventos despoletaram.

Margarida Cardoso proporciona um retrato perspicaz e atento, recorrendo a uma cuidada reconstituição de época, uma sólida direcção de actores (além de Batarda, destaque para Filipe Duarte e Mónica Calle), uma apelativa fotografia, banda sonora apropriada e um ritmo lento e apaziguado, mas raramente enfadonho.

A realizadora consegue trabalhar o material literário (que serve de base ao argumento) de forma eficaz, adaptando-o à linguagem cinematográfica e sendo bem-sucedida na construção de absorventes climas e tonalidades. Por vezes, há traços de um cinema documental (o que nem é de estranhar, tendo em conta que a cineasta já teve alguns projectos nesses domínios), com estilhaços de um realismo cru e marcante, mas "A Costa dos Murmúrios" surpreende sobretudo pela aura brumosa, contemplativa, melancólica e estranhamente hipnótica que carrega, com certos momentos vincados por uma serenidade claustrofóbica. Essa amálgama de realismo com atmosferas inebriantes nem sempre é bem sucedida, mas é suficiente para tornar o filme numa obra singular, suscitando uma vibração rara no cinema português.

"A Costa dos Murmúrios" não se esgota na temática da guerra colonial, mas recorre a esta para percorrer um conjunto de questões como a solidão, a identidade, a confiança, a mentira, o amor, a condição feminina, a liberdade ou o choque de culturas. O resultado é profícuo e promissor, gerando um dos melhores filmes portugueses dos últimos anos, o que não faz de "A Costa dos Murmúrios" uma obra-prima mas chega para a tornar numa recomendável proposta cinematográfica.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

7 comentários:

Gustavo H.R. disse...

O cinema Português raramente chega ao Brasil, porém o cineasta Manoel de Oliveira é reconhecido por parte da crítica aqui. Tenho vaga noção pois sou assinante da Première de Portugal.

gonn1000 disse...

É pena que raramente chegue ao Brasil, porque às vezes há obras interessantes (como "A Costa dos Murmúrios", "Noite Escura" ou "André Valente", algumas das mais recentes), e é pena, também, que só o Manoel de Oliveira seja reconhecido internacionalmente.

A Portugal têm chegado alguns filmes de recomendáveis cineastas brasileiros como Walter Salles ("Central do Brasil", "Abril Despedaçado"), Fernando Meirelles (o excelente "Cidade de Deus"), Jorge Furtado ("O Homem que Copiava", uma boa surpresa) ou Hector Babenco ("Carandiru", que foi injustamente maltratado pela crítica nacional).

Flávio disse...

Fiu ao cinema, mas não consegui ver esta Costa dos Murmúrios em condições, porque atrás de mim um casal de adolescentes imberbes passou o filme inteiro a tagarelar.

Anónimo disse...

Ainda não vi o filme, mas devido ao curso onde estou um futuro visionamento desta obra é apenas uma questão de tempo.
Aprecio bastante a tua forma de criticar os filmes e acho o teu blog bastante completo.
Continua o bom trabalho.

gonn1000 disse...

Flávio: aconteceu-me o mesmo no "Saraband" :)

Dário: Obrigado e boa sorte para o teu novíssimo blog...

O Puto disse...

Fui ver o "Saraband" a Lx (quase de propósito!), e a faixa etária média era alta. Nem vi adolescentes, o filme ia na 3ª ou 4ª semana de exibição e estava quase cheio. Inacreditável!

gonn1000 disse...

Pois eu fui vê-lo depois disso e também estava muito concorrido. Infelizmente, não gostei do filme, é daqueles onde não me revejo minimamente. Talvez daqui a uns anos...