segunda-feira, abril 30, 2007

MÚSICA NO CORAÇÃO

Ícone maior da geração de 90, Kurt Cobain, mais do que pela já por si determinante música que criou com os Nirvana, marcou uma era por estar no atípico papel de um outcast subitamente atirado para os jogos de um sistema mainstream, viragem que acabou por encorajar a sua queda mas que, simultaneamente, o ajudou a tornar-se numa das figuras mais intrigantes e incontornáveis do rock praticado nos últimos anos.

Não faltam, por isso, livros ou filmes (entre documentários e exercícios ficcionais mais ou menos explícitos) em torno da sua história, dos genuínos aos meramente oportunistas. "Kurt Cobain: About a Son", abordagem do norte-americano A.J. Schnack ao percurso do cantor, está longe de ser só mais um exemplo, destacando-se pela forma criativa e pessoal como olha para as experiências de Cobain.

Recorrendo às 25 horas de entrevistas gravadas que o jornalista Michael Azerrad fez ao músico para a criação do livro "Come as You Are: The Story of Nirvana", entre 1992 e 1993, o realizador seleccionou cerca de hora e meia de relatos que constituem o cerne do seu documentário. A originalidade do projecto provém do modo como Schnack acompanhou visualmente esses testemunhos, dispensando quaisquer imagens de arquivo relacionadas com Cobain ou com os Nirvana (excepto escassas fotos já no final do filme) e optando antes por se concentrar nos espaços em que o cantor viveu.
Assim, "Kurt Cobain: About a Son" decorre por três cidades-chave para a vida do músico: Aberdeen, Olympia e Seattle; a primeira palco da sua infância e adolescência, a segunda um porto de abrigo durante uma fase pouco esperançosa e a terceira aquela que o acolheu quando foi catapulado para a fama.

Este é, então, um documentário muito longe dos habituais biopics formulaicos, e se ocasionalmente se revela algo cansativo ao contar apenas com as conversas de Cobain e Azerrad suportadas visualmente por imagens urbanas, na maior parte da sua duração consegue impor-se como um objecto de uma rara ressonância emocional. Parte do mérito deve-se ao discurso de Cobain, capaz de ser sempre articulado e interessante mantendo um apreciável sentido de humor e uma sensibilidade que se vai descortinando. A milhas, portanto, do limitadíssimo e fácil retrato pintado por Gus Van Sant no insípido "Last Days - Os Últimos Dias", que reduziu o músico ao cliché de um junkie imerso numa amargura e desolação constantes.

Mas "Kurt Cobain: About a Son" não vale apenas pela demonstração do carisma do músico, já que Schnack é responsável por uma série de imagens não raras vezes belíssimas e sempre apropriadas aos episódios narrados, dando aos cenários urbanos norte-americanos uma etérea e absorvente poesia visual ou oferecendo curiosas sequências de animação. Esta aura melancólica mas encantatória é reforçada pela partitura instrumental composta por Ben Gibbard (dos Death Cab for Cutie e Postal Service) e Steve Fisk (um dos produtores dos Nirvana), que sofre um eficaz contraste com as canções de algumas bandas preferidas de Cobain também presentes no filme.

Debruçando-se sobre a solitária adolescência do cantor, a paixão pelas artes que o acompanhou desde cedo (e a sua ambição em desfazer fronteiras entre o punk e a pop), a interferência das drogas, o contacto com as vicissitudes da indústria musical, a relação com Courtney Love, a crise interna dos Nirvana ou as consequências da fama, "Kurt Cobain: About a Son" é uma genuína experiência intimista de apelo universal, nem sempre brilhante mas que no geral conquista e comove. Uma bela surpresa que merece ser partilhada.


E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM


"Kurt Cobain: About a Son"
foi uma das obras da secção IndieMusic da quarta edição do IndieLisboa

2 comentários:

Loot disse...

Gostava de ter visto este filme, terei de esperar.
O Last Days é influenciado pela história de Kurt Cobain não é nem pretende ser um retrato do músico e não acho que o filme de Gus Van Sant o tenha reduzido a um junkie.
Mas opiniõs temos todos a nossa.

Cumprimentos

gonn1000 disse...

Ok, o "Last Days" é apenas "influenciado" e não é um retrato oficial, mas é inevitável não comparar. Sinceramente, gostei pouco e acho que este documentário é bem mais consistente e criativo.
Cumprimentos.