Pontualmente, há filmes que surgem de forma discreta mas que acabam por se tornar numa surpreendente e fascinante revelação. É o caso de "Salto Mortal" (Somersault), a primeira longa-metragem da australiana Cate Shortland.
Uma delicada obra sobre a adolescência, segue o rumo de Heidi, uma jovem de 16 anos que foge de casa após ter beijado o namorado da mãe, deparando-se assimcom um futuro incerto e de escassas perspectivas. A protagonista inicia então uma viagem sem um percurso definido, e ao longo desta a sua esfera emocional será alvo de algumas convulsões. Determinada a evitar a solidão, a jovem estabelece contactos sexuais com estranhos de formaregular, na tentativa de colmatar o seu vazio interior, mas esta conduta é reavaliada quando Joe, um rapaz de uma localidade rural, se atravessa no seucaminho.
Um subtil olhar sobre as dores do crescimento e a alvorada da idade adulta, "Salto Mortal" aborda a fase em que não temos outra escolha a não ser enfrentarmos o mundo sozinhos, quando os últimos anos da adolescência suscitam alterações determinantes.
É certo que a premissa deste projecto não traz nada de novo. Afinal, histórias sobre jovens revoltados que fogem de casa e encetam uma viagem de auto-descoberta constituem uma temática por demais trabalhada. Contudo, Cate Shortland assinala aqui uma estreia notável que sabe fugir aos tentadores lugares comuns e abordar esta questão com sensibilidade einteligência, a milhas dos formatos aparentados os telefilmes.
"Salto Mortal" cativa logo nos momentos iniciais através de um brilhante estilo visual, com imagens repletas de texturas e contrastes cromáticos. Contando comum soberbo trabalho de iluminação e uma fotografia igualmente apelativa, o filme gera uma atmosfera singular e encantatória, emanando um realismo etéreo e sedutor. Este apuro estético recusa manobras de ostentação inócua, já que Shortland mantém sempre um considerável rigor e equilíbrio, sabendo dosear os seus condimentos com eficácia.
A realizadora oferece uma obra que, mais do que uma experiência cinematográfica, é sobretudo sensorial, revelando uma preciosa atenção ao detalhe e apostando nas complexidades dos gestos, dos olhares e da linguagem corporal, ou não fosse este um filme sobre os mistérios da intimidade e da cumplicidade.
A actriz Abbie Cornish é essencial para que a película resulte, sendo bem sucedida na difícil mescla de ingenuidade e rebeldia, apresentando uma interpretação com uma presença forte e magnética. Por vezes angelical e frágil, noutras ocasiões insinuante através de uma demolidora carga sexual, Cornish encarna a sua personagem com uma espontaneidade e carisma assinaláveis.
Sam Worthington é também credível como Joe, cuja máscara de austeridade e determinação esconde um denso desassossego emocional. O duo poderia ter seguido estafados clichés boy meets girl, caracterizados por um determinismo estereotipado, mas felizmente Shortland soube como abordar este relacionamento de forma interessante e surpreendentemente madura (tendo em conta que se trata de uma primeira obra).
A realizadora acertou também na escolha da banda sonora, maioritariamente composta por temas da banda australiana Decoder Ring, projecto que fornece uma belíssima colecção de temas de electrónica ambiental não muito distantes de domínios dos Sigur Rós, Air e Múm, unindo experimentalismo a uma forte componente melódica.
Algumas das melhores cenas de "Salto Mortal" resultam, aliás, da união perfeita da imagem e da música, originando estimulantes momentos de antologia vincados por uma carregada vertente contemplativa (os viciantes ambientes de Sofia Coppola são uma referência próxima).
Envolvente e acolhedora, a primeira longa-metragem de Cate Shortland é uma muito inspirada surpresa, proporcionando uma das melhores perspectivas sobre a adolescência de um ponto de vista feminino surgidas nos últimos anos, conseguindo ir bem mais longe do que títulos como "Treze – Inocência Perdida", de Catherine Hardwicke; "Blue Car", de Karen Moncrieff; ou "A Flor do Mal", de Peter Kosminsky, que percorrem territórios semelhantes mas sem o mesmo fulgor. Sem dúvida, uma das mais preciosas pérolas indie de 2005.
E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM
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