Um dos filmes mais marcantes deste Verão, "Homem-Aranha 2" (Spider-Man 2) dá continuidade às aventuras de um dos maiores ícones dos comics norte-americanos e prova que o cinema comercial ainda consegue surpreender.
Há dois anos, o muito adiado, repensado e aguardado projecto de transpor as peripécias do Homem-Aranha para o grande ecrã foi finalmente concretizado, gerando um dos filmes mais populares dos últimos tempos e deixando no ar uma considerável expectativa para a obrigatória sequela. Parte do segredo de tanto sucesso deveu-se à escolha do realizador, Sam Raimi, que até então se encontrava associado a esferas mais underground e que, graças ao herói aracnídeo, conseguiu o seu maior êxito até à data.
Embora fosse, aparentemente, mais um dispendioso filme de Verão, "Homem-Aranha" (Spider-Man) ultrapassou a mediania devido a um argumento bem-estruturado, uma realização segura e apropriada para um universo oriundo da BD, personagens suficientemente consistentes e um elenco que revelava uma inegável entrega ao projecto. Equilibrando na dose certa drama, acção e humor, "Homem-Aranha" proporcionou um blockbuster distante do habitual desfile de efeitos especiais que caracteriza muitos dos exemplos do género, recorrendo a estes apenas em momentos estratégicos e evitando doses desnecessárias de pirotecnia.
Num período marcado por tantos filmes baseados em personagens dos comics (sobretudo da Marvel), "Homem-Aranha" constituiu uma das melhores adaptações do género, respeitando o espírito da BD e apostando na construção de personagens em detrimento das sequências de acção (juntando-se às igualmente interessantes abordagens efectuadas no ousado, atmosférico e intimista "Hulk", de Ang Lee, e aos sofisticados e imaginativos "X-Men" e "X2", de Brian Singer).
Sam Raimi criou um bem-sucedido exercício de revitalização do género em "Homem-Aranha" e comprova, com o muito aguardado segundo episódio da saga, que foi uma escolha apropriada e credível para o cargo de realizador. Contrariamente às múltiplas sequelas desinspiradas, repetitivas e monótonas que proliferam no panorama cinematográfico actual, "Homem-Aranha 2" mantém as fortes doses de entusiasmo, criatividade e componente lúdica que se manifestaram na primeira aventura.
O trio de jovens actores constituído por Tobey Maguire (novamente irrepreensível como Peter Parker), Kirsten Dunst (que compõe uma Mary Jane Watson mais independente e decidida) e James Franco (num competente Harry Osborn, apesar da sua personagem ser pouco trabalhada) persiste, juntamente com as presenças dos veteranos Rosemary Harris (apropriadamente enternecedora como May Parker) e J.K. Simmons (que interpreta um J.J. Jameson perfeito e muito divertido, fiel à matriz da BD). A única personagem nuclear inédita nesta segunda aventura é o vilão Doctor Octopus, interpretado por Alfred Molina, um antagonista mais ambíguo e tridimensional do que o pouco conseguido Duende Verde do filme anterior.
Se "Homem-Aranha" apresentava o universo do protagonista, a sua origem e as reacções iniciais aos inesperados superpoderes, o novo episódio ultrapassa essa perspectiva mais superficial e debruça-se sobre o âmago do herói, as suas inseguranças, medos, incertezas e as consequências que o heroísmo do Homem-Aranha despoletam no seu alter-ego, o tímido e atrapalhado Peter Parker (desfazendo, em parte, a aura feel-good movie que preenchia o primeiro filme).
Sam Raimi explora agora as dúvidas e as depressões do paladino aracnídeo, lançando-o numa fase de questionamento e reavaliação da sua conduta. Assombrado pelo peso do poder e da responsabilidade, Peter Parker afunda-se numa espiral descendente que roça o desespero, tornando-se incapaz de cumprir os compromissos e metas da sua (quase nula) vida privada.
Deparando-se com a obrigação de fazer escolhas determinantes e seguir caminhos imprevisíveis, Parker sente-se tentado a terminar com o seu papel enquanto Homem-Aranha, dado que o herói lhe traz mais entraves do que benefícios. Encarando os seus poderes como uma maldição e não tanto como um dom, o jovem decide dinamizar a sua vida pessoal e recuperar o tempo perdido.
Esta dúvida existencial recorrente é um dos elementos que tornam o Homem-Aranha num dos super-heróis mais verosímeis e acarinhados pelo público da BD, e Sam Raimi consegue retratar eficazmente essas situações conturbadas, gerando diversos bons momentos que conjugam o humor (por vezes negro, mas com gags irresistíveis) e o drama de tonalidades melancólicas. As difíceis escolhas que caracterizam a vida do protagonista funcionam também como uma metáfora do processo de crescimento, ilustrando as experiências e a solidão de um jovem adulto em busca do seu rumo e que teme enfrentar o peso da responsabilidade.
Para além destes momentos de auto-(re)descoberta, prossegue em "Homem-Aranha 2" a inspirada história boy meets girl de Peter Parker e Mary Jane, elemento-chave no primeiro filme e que aqui se revela igualmente essencial. Mary Jane é, agora, uma personagem mais forte e consistente, afastando-se do estereotipo de "jovem-indefesa-que-precisa-de-ser-salva" para se tornar numa presença com mais garra e determinação (e muito mais próxima da personagem original da BD).
O filme equilibra o lado humano/dramático com impressionantes sequências de acção, suscitando situações com altas doses de suspense e adrenalina. Estas cenas resultam melhor do que no episódio anterior, não só pela evolução dos efeitos especiais desde então mas também devido ao vilão Doc Ock, cuja concepção (do uniforme e dos movimentos) é melhor conseguida do que a do algo questionável Duende Verde.
Raimi filma os momentos de acção com um ritmo e eficácia assinaláveis, criando peripécias visualmente surpreendentes e dignas de antologia (embora se tornem, por vezes, demasiado inacreditáveis, cujo exemplo mais gritante são as proezas acrobáticas da tia May). A espaços, o realizador resgata mesmo algum do espírito das suas obras antigas ("Evil Dead", "Darkman"), estruturando situações com consideráveis cargas macabras e sinistras (a explosão que transforma Otto Octavius em Doctor Octopus será, provavelmente, a mais marcante).
O talento do cinesta manifesta-se, ainda, na forma como capta Nova-Iorque, expondo-a como território de fusão de atmosferas e personagens e destacando-a como uma componente primordial para a construção do herói (é impossível imaginar o Homem-Aranha noutro ambiente, assim como Batman não faria sentido fora de Gotham City). Em certas ocasiões, verificam-se ainda ressonâncias da catástrofe de 11 de Setembro (a união dos civis para proteger o herói durante o acidente no metro, por exemplo), factor que também marcava a primeira aventura.
"Homem-Aranha 2" comprova que a saga cinematográfica do herói aracnídeo é uma das mais dignas e coesas de entre as muitas que têm surgido recentemente e que tomam o universo dos comics como referência inspiradora. Aumentando o grau de densidade dramática face ao primeiro episódio sem prescindir, no entanto, de um fundamental aspecto lúdico, esta nova aventura proporciona um entretenimento de topo concebido com alguns dos melhores ingredientes disponíveis.
Apropriado para um público dos 7 aos 77, "Homem-Aranha 2" demonstra que mesmo um filme comercial, ultra-promovido e divulgado, pode conter ainda elementos da magia do cinema e tornar-se num objecto muito convincente. Não será propriamente o filme do ano mas é, até agora, o mais forte candidato a melhor blockbuster de 2004.
E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM
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