terça-feira, novembro 01, 2005

CRIMES E ESCAPADELAS

Geradora de polémica no seu país de origem na altura das sua estreia em 2002, a adaptação mexicana para cinema do livro “O Crime do Padre Amaro” (El Crimen del Padre Amaro), de Eça de Queirós, dividiu opiniões e foi alvo de crítica por parte da Igreja Católica local, ou não apresentasse um olhar desencantado e mordaz sobre alguns dos seus elementos.

Paralelamente a estas críticas, algumas vozes nacionais insurgiram-se contra a falta de fidelidade do filme em relação à visão de Eça, situando os acontecimentos da obra nos dias de hoje e numa sociedade diferente daquela em que o autor se baseou.

Contudo, controvérsia aparte, esta adaptação de Carlos Carrera é uma conseguida e pertinente proposta cinematográfica, e mesmo não sendo totalmente fiel ao livro que a originou não deixa de lançar questões e convidar à reflexão acerca de temas – ainda tão actuais, em Portugal ou no México - como o celibato, o aborto ou a conduta, porventura dúbia, de certos representantes da Igreja.

Um dos maiores trunfos da película é contar com um protagonista complexo, capaz de emanar uma inquietante ambiguidade emocional e moral que o torna numa figura tridimensional, expondo conflitos interiores em grande parte resultantes da realidade conturbada com que se vai deparando na pequena localidade rural em que se instala.

Embora inicialmente adopte uma postura idealista, Amaro colocar-se-á regularmente em causa, questionando a sua vocação e contrastando os princípios que a orientam com o dia-a-dia desencantado que o rodeia, sobretudo devido às atitudes de alguns dos seus colegas, que acabarão por afectar as suas de forma incontornável.

Gael García Bernal, talento mexicano em ascensão, é fulcral para que o filme resulte, oferecendo um desempenho marcado por uma aura circunspecta e introspectiva, numa interpretação que não fica abaixo de outros dos seus papéis marcantes em “Amor Cão”, “Diários de Che Guevara” ou “Má Educação”. O restante elenco é igualmente credível, marcando pela espontaneidade e contribuindo para a interessante carga realista do filme.

Em termos formais, Carrera não é muito inventivo, uma vez que a realização, apesar de correcta, é bastante convencional, e a espaços ameaça cair na formatação de um telefilme, dada a considerável quantidade de grandes planos e a estrutura linear e pouco inventiva da narrativa (assim como a gestão, nem sempre sólida, do melodrama). No entanto, a realização possui também um curioso despojamento, apostando numa vertente crua e artesanal que acaba por ser apropriada à história que se pretende contar.

“O Crime do Padre Amaro” é assim um filme modesto, algo desequilibrado, mas envolvente e bem trabalhado, que nunca opta pela via fácil que a premissa poderia sugerir, renunciando a cenas exibicionistas e escabrosas e enveredando antes por uma saudável sobriedade. Pode não estar à altura do livro que o inspirou, mas não deixa de ser uma obra meritória.
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

19 comentários:

kimikkal disse...

Vi há dias e gostei, é refrescante ver cinema fora da pipoqueira hollywood mas sem cair na armadilha do "cinema de autor".

Este filme é mais um exemplo de como o cinema mexicano está de boa saúde e recomenda-se!

Anónimo disse...

Deu na TV há dias mas não vi, embora gostasse de o ter feito.

A versão portuguesa que estreou esta semana é que me parece ser completamente afastada dos tempos de Eça de Queirós. Segundo li algures, até entram gangs no filme :| LOL!

Cumps.

Daniel Pereira disse...

À primeira vista, pensei que 3/5 era para a versão portuguesa que estava nas salas...livra-te...

gonn1000 disse...

Kimikkal: Sim, este evita vícios comerciais mas também não cai no hermetismo que mina algum cinema de autor.

SOLO: Pois, essa ainda não vi, mas a mudança parece mesmo radical lol

Daniel: Vá lá, não negues à partida um filme que ainda não viste :)

Ricardo disse...

Viva,

Não vi o filme mas arrisco-me a adivinhar uma coisa: não tem nada a ver com a obra do Eça! É verdade? A tua crítica confirma-o! Para quê insistir num título que cada vez mais desvirtua a obra de Eça? Ainda mais quando há dois anos também vi uma versão mexicana da obra que nada tem a ver e que muito bem citas.

O desejo dos padres? Será que foi Eça que o inventou?

Provavelmente não vou ver, pareceu-me interessante na fotografia mas com tiques comerciais que os portugueses, sinceramente, raramente gerem bem.

Abraço,

Daniel Pereira disse...

Ao comentário anterior,

o filme que está analisado é o mexicano.

De qualquer forma, porque é que um filme tem que ser fiel a uma obra literária que adapta? Sempre que a ADAPTAÇÃO é livre, vêm logo não sei quantas vozes dizer que estão a desvirtuar a verdade da obra literária. Cinema é uma coisa, literatura é outra.

gonn1000 disse...

Ricardo: Como disse o Daniel, a versão que analisei é a mexicana e não a portuguesa. E sinceramente, prefiro que um cineasta aposte numa adaptação com marca pessoal em vez de se limitar a fazer uma mera transposição que nada acrescenta ao original. É que se for para isso, já temos o livro e não precisamos do filme. Penso, no entanto, que apesar desta adaptação ter alterado alguns elementos, não desvirtuou a matriz do livro.

gonn1000 disse...

Daniel: Exacto, concordo inteiramente.

Gustavo H.R. disse...

Um filme que devo assitir. O tema será sempre relevante, creio eu.
Em tempo: o escritor portugûes Eça de Queirós é muito apreciado no Brasil.

gonn1000 disse...

Sim, o tema é relevante e a abordagem é interessante. Bom filme :)

Joana C. disse...

acho a versão mexicana de "O crime do Padre Amaro" um filme bastante bem conseguido e que tem toda a essência da obra original de Eça.

quanto ao filme português vi esta semana e só tenho a dizer que foi das piores coisas que já vi. é um dos sérios candidatos a pior filme do ano, sem dúvida.

gonn1000 disse...

Pois, tenho lido comentários muito pouco abonatórios em relação à versão portuguesa. Espero tirar as minhas próprias conclusões em breve...

Flávio disse...

A versão portuguesa do Crime do padre Amaro não é um filme mau. É uma obra feita à medida do público português - e por isso nunca poderia ser o filme mais inteligente do mundo - mas, repito, não é um filme mau.

É um filme que foi feito para vender e que tem tudo para seduzir os portugueses: palavrões, temas actuais (aborto, delinquência), alguma acção, montes de sexo e umas pauladas valentes na Igreja Católica com um descaramento inédito entre nós.

Mais: tem o melhor elenco de sempre do cinema português (e não é exagero, é mesmo o melhor): Nicolau Breyner, Lurdes Norberto, um brilhante Hugo Sequeira, Rui Unas, Diogo Morgado, etc, etc, etc.

Quando fui ver o filme, a sala estava abarrotada e não admira, porque este vai ser um dos maiores sucessos portugueses de sempre. Não queriam que o nosso cinema se reconciliasse com o público? Então aí têm!

gonn1000 disse...

Vi o filme hoje, e embora não seja tão mau como esperava, também não acho que seja grande coisa. Poderá ser um bom produto, mas não - quanto a mim - um bom filme. Sim, tem alguns bons actores, mas quase nenhum tem personagens consistentes para defender, e sinceramente as interpretações de Hugo Sequeira, Rui Unas e Diogo Morgado não me convenceram.

Daniel Pereira disse...

É o problema de Portugal. Somos tão burrinhos não é? Para aderirmos só com obras fáceis não é? Até me admira como não se inclui a Soraia Chaves (ou as mamas dela)nesse melhor elenco de sempre. E não, não vou ver esse filme. Não quero contribuir para que se façam novas obras como aquela. Irra...

gonn1000 disse...

"E não, não vou ver esse filme. Não quero contribuir para que se façam novas obras como aquela. Irra..."

Se não viste, como sabes como é a obra? Além da crítica de cinema também te dedicas à premonição?

Daniel Pereira disse...

Tenho pena de que não consigam ver que o filme não presta antes de o verem. Mas continuem a ver filmes que hão de conseguir.

gonn1000 disse...

Sim, claro, mas só se o "Y" disser bem deles, não é? :P

Daniel Pereira disse...

Encerro aqui esta inútil discussão.