terça-feira, janeiro 30, 2007

O TALENTOSO MR. MINGHELLA

Realizador que se distinguiu, sobretudo, por "O Paciente Inglês", que apesar de interessante é dos filmes mais sobrevalorizados da década de 90, o britânico Anthony Minghella investiu, nos dois títulos seguintes - "O Talentoso Mr. Ripley" e "Cold Mountain" -, nos mesmos traços que o levaram à fama.
Mantendo um estilo elegante e polido, com um requinte técnico que por vezes, de tão ambicioso (ou mesmo pomposo), caía no academismo, regressa agora com uma obra mais discreta, ainda que a sofisticação formal continue presente.

Em "Assalto e Intromissão" (Breaking and Entering) o cineasta afasta-se dos domínios do filme de época (tanto da vertente thriller como da épica) para se ambientar na Londres actual, em particular em King's Cross, bairro caracterizado por um melting pot étnico que acolhe aqui o recém-inaugurado atelier de um jovem arquitecto e do seu sócio.
Parte de um projecto de reestruturação e requalificação da zona, esta nova infra-estrutura acaba por ser alvo de recorrentes assaltos, o que leva um dos proprietários a investigar a origem dos roubos. Tal atitude traz-lhe, no entanto, mais problemas, uma vez que o envolve em peripécias que colocarão em causa a coesão da sua família, já por si frágil devido às barreiras que se colocam entre si, a sua companheira e a sua enteada.

Drama urbano com ressonâncias sociais, "Assalto e Intromissão" sai-se melhor quando se agarra às contrariedades e inquietações da vida conjugal do que na exploração dos contrastes culturais que influenciam as relações das suas personagens. Isto porque, num filme onde há figuras de origens tão díspares (ocidentais, muçulmanas, bósnias, africanas, da Europa de leste), Minghella nem sempre é capaz de desenvolver um retrato que ultrapasse a caricatura. As intenções, por si só, não bastam, e o realizador secundariza questões que pediam maior complexidade na abordagem.
Felizmente, "Assalto e Intromissão" compensa esta limitação com uma perspectiva adulta e tridimensional sobre os relacionamentos humanos, conseguindo mesmo duas ou três sequências de considerável vibração emocional.
Estas ocorrem sobretudo nas cenas com o casal interpretado por Robin Wright Penn e Jude Law, onde a tensão de um quotidiano dolente implode através de diálogos intensos que denunciam uma escrita apurada. É inevitável não destacar a entrega do duo, em especial a de Penn, com uma presença difícil e absorvente, simultaneamente apaziguada e à beira da combustão, num daqueles desempenhos cuja subtileza se arrisca a tornar-se memorável.

Juliette Binoche, no papel de imigrante muçulmana, exibe a solidez habitual mas a sua personagem torna-se irritante quando insiste na auto-comiseração, arriscando cair nos clichés de uma personagem terceiro-mundista genérica.
Mais conseguida, embora de menor impacto para a narrativa, é a prostituta interpretada por Vera Varmiga, responsável pelos momentos mais hilariantes do filme, outra presença forte de um elenco que inclui ainda Martin Freeman (da série "The Office") ou Ray Winstone.

"Assalto e Intromissão" pede por vezes demasiado ao espectador, como num final que se arrisca a colocar em causa a verosimilhança presente até então, mas o que lhe dá em troca compensa-o, casos da envolvente banda-sonora (uma improvável colaboração de Gabriel Yared com os Underworld), ou da fotografia de Benoit Delhomme, que aliada à segura realização ofecere alguns planos inspirados de uma Londres pouco vista.
A registar, também, a atmosfera apropriadamente lacónica mantida ao longo do filme, assim como a densidade emocional que Minghella consegue impor a uma obra que, mesmo hesitante e com arestas por polir, é uma recomendável adição à filmografia do realizador.

E O VEREDICTO É:
3/5 - BOM

domingo, janeiro 28, 2007

A ILHA

Criada por J. J. Abrams em 2004, "Perdidos" (Lost) tem já lugar entre as séries televisivas mais emblemáticas e entusiasmantes da década, sobrepondo-se a grande parte da concorrência não tanto pela premissa, mas sobretudo pela sua execução, apresentando uma imbatível energia narrativa e um minucioso trabalho de argumento que a tornam em muito mais do que uma mera história de aventuras.

Produzida pela ABC, a série foi uma das responsáveis - juntamente com "Donas de Casa Desesperadas" - pela revitalização do canal televisivo e percebe-se porquê, já que esta história - que segue as experiências dos 48 sobreviventes de um avião que se despenha numa desconhecida ilha do Pacífico - é desenvolvida de forma sempre fresca e intrigante, mantendo um ritmo invejável ao longo dos 24 episódios da primeira temporada.

Seguindo o percurso de 14(!) personagens principais, "Perdidos" começa por causar impacto logo no episódio piloto, quando os sobreviventes do avião reagem ao acidente e tentam lidar com uma situação inédita num cenário incógnito.
Aos poucos, Abrams vai revelando ao espectador os segredos e algumas das memórias mais marcantes das suas personagens, uma vez que todos os episódios seguem não só o dia-a-dia na ilha mas também eventos do passado dos seus novos habitantes. Os flashbacks são assim presença regular na série e peças fundamentais para que as personagens se tornem mais densas e quase sempre ambíguas, sendo interessante verificar as diferenças de comportamento de algumas delas antes e depois do acidente de avião.

Abrams contrói cada capítulo como uma elaborada peça de relojoaria, sabendo dosear suspense, acção, vibração emocional e algum humor, evidenciando um gosto pelo detalhe que se manifesta nas interligações entre os acontecimentos da ilha e as recordações da personagem em destaque. Daí resulta um intrincado puzzle cuja aura enigmática se adensa continuamente, deixando o espectador tão hesitante como os protagonistas em relação ao facto de nunca chegar nenhuma equipa de salvamento das vítimas do desastre e, mais ainda, quanto aos mistérios e singularidades da ilha.

O novo lar dos sobreviventes, à partida paradisíaco, esconde vários perigos que vão sendo expostos ao longo da involuntária estadia, desde uma assustadora e gigantesca criatura até aos estranhos habitantes denominados "Os Outros", aparentemente responsáveis pela morte dos passageiros de outro desastre de avião ocorrido há 16 anos.

Tendo em conta que as personagens se encontram imersas num contexto tão nebuloso e inquietante, a série tornou-se motivo para todo o tipo de especulações e circulam, entre os muitos fãs, propostas quanto ao que está por trás da existência da ilha. A primeira temporada sugere algumas pistas, sobretudo nos episódios finais, mas mesmo depois de inúmeros twists e demais manobras do bem arquitectado argumento, ficam quase todas por esclarecer.

Abrams, que anteriormente já se tinha destacado por outras séries televisivas, ("Felicity", "Alias"), e que posteriormente efectuou a passagem para o grande ecrã com "Missão: Impossível 3", tem em "Perdidos" o seu trabalho mais conseguido, um entretenimento superior onde uma componente lúdica se interliga com uma tensão por vezes sufocante.

O elenco, composto por caras até então pouco conhecidas, surpreende pela coesão, pois nenhum actor oferece um desempenho que comprometa os bons resultados, e o desenvolvimento das muitas personagens é igualmente digno de elogios.

Desde o médico Jack (Matthew Fox), que as circunstâncias obrigam a que se torne no mentor do grupo; o seu contraponto Sawyer (Josh Holloway), individualista e sarcástico; a dúbia mas prestável Kate (Evangeline Lilly), que se coloca entre ambos como provável interesse amoroso; o ex-soldado iraquiano Sayid (Naveen Andrews), que se aproxima da superficial Shannon (Maggie Grace) para descontentamento do irmão desta, Boone (Ian Somerhalder); o ingénuo e atormentado Charlie (Dominic Monaghan), músico que tenta deixar a dependência da heroína enquanto auxilia Claire (Emilie de Ravin), grávida de vários meses; passando por Jin (Daniel Dae Kim) e Sun (Yunjin Kim), um casal coreano cuja relação ameaça ruir; pelo ex-paralítico e obstinado Locke (Terry O'Quinn); por Hurley (Jorge Garcia), obeso e obcecado por um enigma que envolve números; e por Michael (Harold Perrineau Jr.) e Walt (Malcolm David Kelley), pai e filho que tentam aprender a viver juntos; a série tece um complexo novelo que seduz pela forma como interliga todos estes temperamentos e perspectivas, muitas vezes antagónicos.

Redefinindo o género de acção e aventura para o século XXI, a primeira temporada de "Perdidos" cativa pela sofisticação e engenho transpirados em todos os episódios, gerando várias horas que compõem alguma da mais aborvente televisão que se fez nos últimos tempos, dado que é praticamente irresistível passar de imediato para outro capítulo depois de se mergulhar nesta saga brilhante, a ver e rever sem reservas.

E O VEREDICTO É:
4/5 - MUITO BOM

Promo de "Perdidos" realizado por David LaChapelle para o Channel 4

sexta-feira, janeiro 26, 2007

OS PECADOS DA CARNE

Há três anos, a fast food foi alvo de abordagem no cinema no documentário "Super Size Me - 30 Dias de Fast Food", onde o realizador Morgan Spurlock se submeteu, em frente às câmaras, a uma dieta baseada exclusivamente nesse tipo de comida de forma a demonstrar os seus efeitos nefastos. O filme era uma experiência curiosa, mas limitada e demasiado tendenciosa, propondo uma abordagem por vezes certeira mas geralmente insipiente.

Agora, o tema volta a ser alvo de destaque - e alguma polémica - em "Geração Fast Food" (Fast Food Nation), a mais recente obra de Richard Linklater que segue os rumos de várias personagens interligadas, directa ou indirectamente, pelo "Big One", o novo e bem sucedido hambúrguer de uma das principais marcas da área.
Depois do marcante díptico "Antes do Amanhecer"/"Antes do Anoitecer", de inovadoras películas de animação ("Walking Life", "A Scanner Darkly") ou de envolventes olhares sobre a adolescência ("Noites Suburbanas"), o realizador aposta aqui num estilo que por vezes se aproxima do docudrama.

Embora as peripécias vividas pelas personagens sejam fictícias, os apelos em relação às condições de produção de alguma fast food assentam em pressupostos aparentemente reais - de resto já focados no livro de Eric Schlosser, em que o filme se baseia -, e geram as cenas mais cruas da acção, como as da morte de animais no matadouro ou a preparação da carne na fábrica.

Seguindo as experiências de um dos executivos da empresa, de uma imigrante mexicana ilegal que encontra trabalho como operária numa das fábricas da mesma e de uma estudante idealista que desiste do seu part time num dos restaurantes, "Geração Fast Food" entrelaça os percursos destes e de outros indivíduos para compor não só uma perspectiva relativamente complexa dos bastidores de um tipo de alimentação, mas também das contraditórias realidades de uma sociedade e de um país.

Linklater, aqui atipicamente cáustico, não hesita em colocar a nu a exploração laboral, as débeis condições de higiene no fabrico da comida, os maus tratos a que estão sujeitos os animais usados como matéria prima ou a hipocrisia e crise de valores reinante nas grandes corporações.
O retrato é assumidamente militante, a espaços redutor e na maior parte das vezes nem revela nada que não tenha sido já divulgado, ou mesmo comprovado, mas não deixa de ser um alerta contundente, feito com seriedade e inteligência, que compensam a ocasional falta de subtileza (mesmo assim, a milhas do estilo espalhafatoso dos documentários de Spurlock ou Michael Moore).

Também ajuda que a maior parte das personagens não sejam meros joguetes destinados a emitir um ponto de vista mais ou menos didáctico, pois Linklater consegue gerar uma considerável ressonância emocional nesta rede de histórias entrecruzadas.
O elenco é, nesse sentido, uma óbvia mais-valia, e entre os muitos nomes que o constituem há gente tão diversa como Greg Kinnear, perfeito na composição de homem-de-negócios de coração mole; Catalina Sandino Moreno, que encarna uma jovem comovente com a sobriedade e sensibilidade que a revelaram em "Maria Cheia de Graça"; ou Ethan Hawke, figura recorrente na obra de Linklater em mais uma prestação que irradia espontaneidade. Bruce Willis, num cameo precioso, dispara as linhas de diálogo mais demolidoras do filme; já a participação de Avril Lavigne deixa muitas interrogações, tendo em conta que o seu impacto é praticamente nulo.

"Geração Fast Food" nem sempre abre tantos horizontes como supõe, no entanto é um filme que merece ser visto e discutido, pois para além das questões que levanta comprova a habitual habilidade de Linklater para os diálogos e direcção de actores, beneficiando ainda de uma narrativa fluída e de uma intrigante banda-sonora, composta pelos Friends of Dean Martinez. Tudo somado, faz desta uma das primeiras estreias do ano a ter em conta e mais um convincente trabalho de um dos confiáveis realizadores norte-americanos revelados na década passada.

E O VEREDICTO É:
3,5/5 - BOM

quinta-feira, janeiro 25, 2007

ESTREIA DA SEMANA: "DIAMANTE DE SANGUE"

Misto de drama e aventura tendo como pano de fundo o tráfico de diamantes na Serra Leoa, "Diamante de Sangue" (Blood Diamond) é a mais recente proposta do habitualmente competente Edward Zwick, realizador de "O Último Samurai", "Coragem Debaixo de Fogo" ou (de alguns episódios) da série televisiva "Começar de Novo".
Ainda não será desta que Zwick vai para a lista dos indispensáveis, mas o seu novo filme é uma das boas estreias deste início de ano, e embora se sustente num argumento demasiado convencional é mais uma oportunidade para confirmar o talento interpretativo de um Leonardo DiCaprio que tem surpreendido (confirme-se, por exemplo, em "The Departed: Entre Inimigos"). Djimon Hounsou e Jennifer Connelly são outros nomes do elenco de um título a ver.

Outras estreias:

"À Beira do Precipício", de Kim Rosi Stuart
"Contado Ninguém Acredita", de Marc Foster
"O Escolhido", de Neil LaBute

terça-feira, janeiro 23, 2007

TOU SUPERAFIM

Nem de propósito... Ainda há dias destaquei aqui o disco de estreia dos Cansei de Ser Sexy, e hoje soube que a banda confirmou já a sua primeira actuação em Portugal. O sexteto brasileiro actua a 4 de Abril no Lux, em Lisboa, às 21h30, com primeira parte dos Tilly & The Wall. Se o concerto estiver à altura do que tenho ouvido dizer dos espectáculos deles, deverá valer bem a pena.

Entretanto, como aperitivo, deixo aqui mais dois vídeos do grupo, ambos não-oficiais. O primeiro, de uma actuação da banda, com a vocalista Lovefoxxx no melhor estilo cheerleader punk, e o segundo feito por jovens fãs que apostaram no do-it-yourself e os resultados são... err... sui generis, mas acho que os CSS eram capazes de gostar.


Cansei de Ser Sexy - "CSS Suxxx (Live)"


Cansei de Ser Sexy - "Bezzi"

segunda-feira, janeiro 22, 2007

CINEMA: OS MELHORES FILMES DE 2006

Melhor Filme
"Voltar", de Pedro Almodóvar
"Munique", de Steven Spielberg
"O Segredo de Brokeback Mountain", de Ang Lee
"Match Point", de Woody Allen
"A Senhora da Água", de M. Night Shyamalan

Melhor Filme em Língua Não-Inglesa
"Voltar", de Pedro Almodóvar
"O Tempo Que Resta", de François Ozon
"Em Paris", de Christophe Honoré
"O Paraíso, Agora!", de Hany Abu-Assad
"Ninguém Sabe", de Hirokazu Kore-eda



Melhor Filme Animado
"Pular a Cerca"
, de Tim Johnson e Karey Kirkpatrick
"Happy Feet", de George Miller
"A Idade do Gelo 2 — Descongelados", de Carlos Saldanha
"Por Água Abaixo", de David Bowers e Sam Fell
"A Casa Fantasma", de Gil Kenan

Melhor Filme Português
"20,13", de Joaquim Leitão
"Coisa Ruim", de Tiago Guedes e Frederico Serra
"Transe", de Teresa Villaverde
"Viúva Rica Solteira Não Fica", de José Fonseca e Costa
"Lisboetas", de Sérgio Trefaut

Melhor Série Televisiva
"Sete Palmos de Terra", de Alan Ball
"Perdidos", de J. J. Abrams
"A Letra L", de Ilene Chaiken
"Donas de Casa Desesperadas", de Marc Cherry
"Os Sopranos", de David Chase

domingo, janeiro 21, 2007

HERÓIS IMAGINÁRIOS (?)

Depois de uma obra intimista como "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos", o regresso de Clint Eastwood à realização surge através de um projecto mais ambicioso, o díptico "As Bandeiras dos Nossos Pais" (Flags of Our Fathers) e "Cartas de Iwo Jima", dois filmes que se complementam uma vez que focam a mesma temática, embora com pontos de vista distintos.
O primeiro, que estreia esta semana, centra-se nos soldados americanos que invadiram Iwo Jima, uma ilha do Pacífico que se tornou num dos pontos estratégicos durante a II Guerra Mundial. O segundo, com chegada às salas prevista para Fevereiro, segue as experiências da facção japonesa, que lutou pela conquista do mesmo território.

Mais do que focar essa batalha, o filme lança um olhar sobre o impacto que a sua imagem mais emblemática gerou, a de uma foto com seis soldados americanos a empunhar a bandeira num cume de Iwo Jima. Tendo por base dados verídicos, Eastwood elabora uma ficção que se concentra nas peripécias e reacções que marcaram três dos soldados, tanto no palco da guerra como, posteriormente, nos das diversas palestras que deram por todo o país enquanto heróis sobrevivente de um conflito trágico.

Esse heroísmo é, no entanto, posto em causa ao longo da acção, contrariando as ovações do público que acolhe o trio com euforia, ânimo e elevada estima, aderindo em massa a uma operação de propaganda que visa recolher fundos para o exército.
Os três jovens jovens, relutantes em aderirem às luzes mediáticas, acabam por lidar com estas de várias formas: o socorrista John "Doc" Bradley mantém uma postura discreta e reservada, recordando com angústia alguns colegas que perdeu; Rene Gagnon vai aceitando progressivamente o alvo de atenção em que se torna, muito por culpa da sua namorada, hipnotizada pelos holofotes; e Ira Hayes, que desde o início se mostrou menos cooperante com a digressão patriótica, acaba por se refugiar no álcool e mergulhar numa conduta cada vez mais descontrolada, não só pelas memórias que o traumatizaram mas pelo racismo de que é alvo, por detrás das câmaras, devido à sua acendência índia.

Se é certo que o anti-americanismo se tornou moda em alguns meios, Eastwood recusa esse posicionamento fácil, mas também não transforma o filme num objecto glorificador das proezas dos EUA, antes numa obra desencantada e ambígua que expõe a complexidade humana e evita maniqueísmos tendenciosos.
Esse equilíbrio e inteligência não basta, contudo, para que "As Bandeiras dos Nossos Pais" ascenda à categoria dos filmes indispensáveis, já que sofre de alguns problemas de ritmo, de um argumento demasiado fragmentado (os recorrentes flashbacks nem sempre são oportunos), de um desenvolvivento das personagens que fica aquém das expectativas e de uma escassa capacidade de demarcar um espaço próprio, apresentando uma perspectiva sóbria e perspicaz mas não explorando territórios especialmente inovadores.

À medida que as suas excessivas duas horas de duração vão decorrendo, adensa-se um efeito de repetição que faz desta uma obra algo genérica, embora raramente dê passos em falso. Tecnicamente é mesmo uma película sem reparos, com sequências de grande intensidade visual servidas pela impressionante fotografia de Tom Stern ou pela realização ágil de Eastwood, que nas cenas bélicas chega a lembrar "O Resgate do Soldado Ryan", de Steven Spielberg (não por acaso, co-produtor do filme) ou a série televisiva "Irmãos de Armas", dadas as cargas de um realismo cru e visceral.
Do elenco, destacam-se Ryan Phillippe, com uma contenção e vibração já presentes em "Colisão", de Paul Haggis (que aqui é um dos argumentistas), confirmando-o como um actor a seguir, e Adam Beach, que encarna um Ira Hayes apropriadamente tenso e irriquieto. Barry Pepper e Jamie Bell contribuem para enriquecer a ficha técnica, mas as suas capacidades são subaproveitadas pela secundarização das personagens que interpretam.

Mais ambicioso do que conseguido, "As Bandeiras dos Nossos Pais" é ainda assim uma obra com méritos que justificam a sua descoberta, mas não deixa de ser algo desapontante tendo em conta que havia aqui, tanto pelo tema como pelos nomes envolvidos, substrato para alcançar resultados de maior brilhantismo. Talvez esses estejam presentes no outra metade do díptico, "Cartas de Iwo Jima", a confirmar no próximo mês...

E O VEREDICTO É:
3/5 - BOM

sábado, janeiro 20, 2007

RECOMENDAÇÕES DO DIA:

19h00: "A Morte Fica-vos Tão Bem", de Robert Zemeckis (Hollywood)
21h00: "Terra Sangrenta", de Roland Joffé (Hollywood)
22h25: "1941 - Ano Louco em Hollywood", de Steven Spielberg (AXN)
23h00: "Infernal Affairs I - Infiltrados", de Andrew Lau e Alan Mak (A Dois)
23h35: "Perseguido Pelo Passado", de Brian de Palma (Fox)
00h30: "Ter e Não Ter", de Howard Hawks (A Dois)
02h00: "Mogambo", de John Ford (Hollywood)


'Infernal Affairs I - Infiltrados'

quinta-feira, janeiro 18, 2007

ELECTROTRASH

Uma das melhores revelações de 2006, os brasileiros Cansei de Ser Sexy têm, no seu álbum de estreia homónimo, algumas das canções mais contagiantes e irresistíveis dos últimos tempos, exemplos de uma pop que equilibra com eficácia acessibilidade e estranheza.

O sexteto, composto por membros com experiência no mundo da moda, artes gráficas e cinema, conheceu-se através da internet, e mesmo sem que nenhum dos elementos tivesse qualquer formação musical (excepto o baterista, que é também a única presença masculina do grupo), esse contacto acabou por levar à formação de uma banda.
O nome, aproveitado de um excerto de uma entrevista a Beyoncé, sugere logo que este é um projecto atípico e dominado por um peculiar sentido de humor, presente também nas letras de grande parte das canções e na postura descomprometida dos músicos.

Contrastando e recontextualizando diversas influências, os Cansei de Ser Sexy tanto enveredam por domínios electro como resgatam códigos da new wave, percorrendo ainda territórios de um indie rock de meados de 90 e adiconando ocasionais temperos funk.
O disco de estreia reaproveita temas dos seus três EPs - "Em Rotterdam Já é Uma Febre", "A Onda Mortal / Uma Tarde Com PJ" e "CSS SUXXX" - e oferece outros tantos inéditos, resultando num todo coeso, embora ecléctico, onde é difícil apontar momentos que se destaquem uma vez que todos poderiam funcionar como singles, dada a carga viciante que o álbum transpira da primeira à última canção.

Não é que o grupo traga aqui algo de muito inovador, até porque é fácil encontrar aproximações com outros nomes em quase todos os temas - das Le Tigre a Peaches, das Breeders aos Vive la Fête, das Chicks on Speed aos Metric, a lista de comparações não é curta -, mas a banda não perde por isso, uma vez que a despretensão é evidente e as canções não aspiram a mais do que funcionar enquanto pastiches lúdicos e hedonistas, e cumprem-no de forma bastante meritória.

Concentrado de pérolas pop pastilha-elástica, "Cansei de Ser Sexy" dispara tiros certeiros como o single "Let's Make Love and Listen to Death From Above", o delirante "Meeting Paris Hilton" (centrado na socialite mais mediática do momento), o efervescente "Alala" (proposta irrecusável numa pista de dança), ou a ode à música que transborda no pujante "Music Is My Hot Hot Sex".
Entre divagações sobre a cultura pop, estudantes de arte ou provocações sexuais, as letras percorrem territórios bizarros e quase sempre nonsense, e as melodias upbeat que as acompanham contribuem para que as canções se tornem em absorventes estilhaços de energia cinética, atirando a banda para um universo próprio, não obstante as óbvias influências.

Lamenta-se, contudo, que a edição internacional do disco (via Sub Pop) não inclua alguns temas da versão brasileira, casos do cativante devaneio de electrónica lo-fi "Computer Heat" e das canções cantadas em português, como "Acho um Pouco Bom" (perfeita descrição de um dia de inércia caseira), "Bezzi" (hilariante rebuçado pop centrado num DJ brasileiro) e "Superafim" (provavelmente a composição mais trashy da banda).
De qualquer forma, seja na edição brasileira ou na internacional, "Cansei de Ser Sexy" ganha o lugar de feelgood album de 2006 já que, para afastar a má disposição, é mais eficaz do que dez aspirinas e tem a vantagem poder ser consumido sem contra-indicações. Pelo meos até chegar o próximo...

E O VEREDICTO É
: 3,5/5 - BOM

Cansei de Ser Sexy - "Alala"

ESTREIA DA SEMANA: "SCOOP"

"Match Point", um dos melhores filmes de 2006, revitalizou a carreira de Woody Allen, que nos últimos anos tinha vindo a assinar obras competentes, mas que pouco acrecentavam à sua filmografia. "Scoop" tem a ingrata tarefa de ser o seu sucessor, e desta vez o cineasta apresenta uma história também misteriosa, mas alicerçada na comédia, seguindo a investigação de uma jovem estudante que, com a ajuda de um jornalista morto (!), tenta descobrir a identidade do "Assassino da Carta de Tarot", um homicida que atormenta Londres (como no filme anterior, a cidade que acolhe a acção).
Allen volta a figurar no elenco de um filme seu, que conta com Scarlett Johansson e Hugh Jackman nos papéis protagonistas (juntos num filme marcado pelo ilusionismo, à semelhança do que ocorreu no recente "O Terceiro Passo", de Chris Nolan).

Outras estreias:

"Assalto e Intromissão", de Anthony Minghella
"Caos", de Tony Giglio

terça-feira, janeiro 16, 2007

O MUNDO AO CONTRÁRIO

Depois de uma vibrante primeira-obra, "Amor Cão", e de uma segura prova de talento com "21 Gramas", o mexicano Alejandro González Iñárritu oferece em "Babel" o seu terceiro tomo sobre a trilogia da dor, uma obra que, à semelhança das anteriores, entrecruza várias histórias e personagens para compor um retrato assente na solidão e na incomunicabilidade dominantes nas sociedades contemporâneas.

A narrativa, mais uma vez baseada numa estrutura em mosaico - resgatada há anos por "Magnolia", de Paul Thomas Anderson, e desde então reutilizada em outros "filmes de prestígio" como "Colisão", de Paul Haggis, ou "Syriana", de Stephen Gaghan - desdobra-se por vários continentes, e se nos títulos anteriores Iñárritu usou um acidente de automóvel como elemento despoletador da acção, aqui tudo se desenvolve a partir de um tiro disparado contra uma turista norte-americana, em Marrocos, por duas crianças locais, no seguimento de uma mera brincadeira.

"Babel" é o mais ambicioso filme do realizador, o que em certos momentos resulta bem, quando consegue de facto tornar-se numa obra desafiante, e noutros nem por isso, pois também não são raras as cenas em que o excesso de pretensão leva a um défice de subtileza, sublinhando o óbvio que surge com uma capa de revelação surpreendente e acutilante.

Menos espontâneo do que "Amor Cão" e sem a densidade emocional que "21 Gramas" conseguia manter do princípio ao fim, possui no entanto motivos que ajudam a compreender as distinções de que tem sido alvo (como o Globo de Ouro de Melhor Filme): Iñárritu volta a confirmar-se como um excelente realizador, emanando um realismo austero, cortante mas sempre envolvente; a montagem serve na perfeição os saltos temporais e geográficos (pelos EUA, Marrocos, Japão e México) entre as várias histórias, impondo um ritmo que nunca cede; e a fotografia aposta em minuciosos e palpáveis cromatismos, capazes de traduzir as diversas atmosferas que a acção percorre.
Evidenciando as capacidades de um esteta apurado e exigente, o filme apresenta uma série de sequências de antologia, sendo a melhor, provavelmente, a que decorre numa discoteca em Tóquio, onde uma irrepreensível manipulação do som e da imagem geram uma magnética experiência sensorial (quase tão boas, as cenas de jovens japoneses no parque partilham das mesmas texturas).

Também no elenco não há reparos a fazer, já que tanto as presenças mediáticas - um Brad Pitt envelhecido, a jogar contra a sua imagem de marca; uma Cate Blanchett que mais uma vez combina classe e autenticidade e um Gabriel Garcia Bernal a comprovar a versatilidade - como as menos conhecidas - Adriana Barraza, num dos desempenhos mais sentidos como ama dedicada; Rinko Kikuchi, protagonista do melhor segmento do filme na pele de uma carente surda-muda; ou as crianças marroquinas e americanas -, são exímias nas suas composições, traduzindo uma intensidade cuja verosimilhança só é colocada em causa por alguns elementos do argumento.
Aqui notam-se as maiores falhas de "Babel", cujo suporte da narrativa na teoria do caos e no "efeito borboleta" (onde um acontecimento aparentemente irrelevante acaba por influenciar a origem de outros de maiores contornos), aliada a um apelo acerca das consequências da globalização, o transformam num filme "de mensagem" veiculada sem a complexidade que julga ter, suscitando episódios presunçosos, forçados ou apenas algo irritantes (como o excessivo calvário a que a criada mexicana e as duas crianças norte-americanas são sujeitas).

Mesmo assim, com ocasionais simplificações e estereótipos, e nunca dando aos actores personagens à altura do seu talento - uma vez que a maior parte destas poderiam ser mais desenvolvidas -, "Babel" tem méritos que o situam num patamar acima da média.
Fica por fazer o grande filme sobre os contrastes culturais, as relações humanas (em especial as familiares) e a comunicação (ou falta dela) que Iñárritu pretendia, mas obtém-se ainda uma recomendável, e a espaços fascinante, experiência cinematográfica, que só ganharia se não tentasse dizer tanto a todo o momento.

E O VEREDICTO É:
3,5/5 - BOM

segunda-feira, janeiro 15, 2007

CRISE NA MEIA-IDADE

Cineasta com uma filmografia já considerável mas até agora inédita entre nós, o italiano Mario Martone tem finalmente uma obra estreada em salas nacionais. "O Odor do Sangue" (L’odore del sangue), a sua mais recente realização, é um filme centrado na crise conjugal de um casal de meia-idade da classe alta de Roma.

Carlo e Silvia, após vários anos de casamento, possuem uma relação que não é movida pela exclusividade, antes pelo contrário, parece manter-se devido a uma liberdade mútua em que ambos permitem que o cônjuge se envolva com terceiros.
Essa ligação com outros parceiros, que até então não gerou fricções na relação matrimonial, começa a tornar-se problemática quando Silvia é alvo de interesse de um jovem, e o contacto que se inicia como uma mera distracção casual adopta contornos mais densos e prementes, ao ponto de deixar Carlo intrigado e preocupado com o interesse que a sua esposa tem por si, anteriormente nunca colocado em causa.
A proximidade de Silvia com o novo amante não só altera a rotina do seu casamento como deixa Carlo num estado de crescente ciúme e hesitação, comprometendo também o relacionamento deste com Lu, a jovem com quem partilha a sua casa de campo.

Adaptando um romance de Goffredo Parise, Mario Martone propõe aqui um estimulante mergulho nas contingências das relações humanas, em particular no que pode levar a que a aparente cumplicidade conjugal se desvaneça sem que nenhuma das partes saiba como reparar essa deterioração emocional.

"O Odor do Sangue" é uma obra crua e cruel, obrigando os protagonistas a descerem ao fundo dos seus limites e deixando-os entregues às volatilidades do desejo, que se arriscam a comprometer a redescoberta do amor.
O argumento, caracterizado por um amargo travo verista e atento aos detalhes do quotidiano, insinua-se pela capacidade de sugestão, onde o real e o imaginado confundem não só Carlo, perdido nas suas dúvidas e hesitações, mas oferecem também um curioso desafio ao espectador.
Dominado por um tom que se torna progressivamente mais pesado, com expoente máximo no amargurado desenlace, o filme lembra por vezes outros retratos conjugais recentes, como "5X2", de François Ozon, com o qual partilha o olhar clínico e densas camadas de negrume.

Não sendo arrebatador, "O Odor do Sangue" é uma película francamente conseguida, a que não é alheio um argumento bem estruturado, uma mise-en-scène precisa e rigorosa e uma sólida direcção de actores, já que tanto Michele Placido como Fanny Ardant defendem bem as suas personagens. E, não menos importante, é um filme que deixa aguçada a curiosidade em relação à obra anterior de Martone, assim como despoleta alguma expectativa quanto a sua próxima estreia em salas nacionais.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

UM MOTIVO PARA LIGAR A TV

Esta noite, às 00h15m (se não houver atrasos...), na TVI. Mais aqui.

domingo, janeiro 14, 2007

CINEMA: OS MELHORES DE 2006: ACTORES

Melhor Actor:
Eric Bana - "Munique"
Jake Gyllenhaal - "O Segredo de Brokeback Mountain", "Máquina Zero"
Melvil Poupaud - "O Tempo que Resta"
Kais Nashef - "O Paraíso, Agora!"
Heath Ledger - "O Segredo de Brokeback Mountain"

Melhor Actriz:
Penelope Cruz - "Voltar"
Felicity Huffman - "Transamerica"
Reese Witherspoon - "Walk the Line"
Kirsten Dunst - "Marie Antoinette"
Sarah Polley - "A Vida Secreta das Palavras"

Eric Bana em 'Munique'
Melhor Actor Secundário:
Kevin Zegers - "Transamerica"
Peter Sarsgaard - "Máquina Zero"
Daniel Craig - "Munique"
Michael Sheen - "A Rainha"
Ashton Holmes - "Uma História de Violência"

Melhor Actriz Secundária:
Maggie Gyllenhaal - "Finais Felizes", "World Trade Center"
Eva Green - "007 - Casino Royale"
Samantha Morton - "O Libertino"
Vera Farmiga - "The Departed - Entre Inimigos"
Maria Bello - "Uma História de Violência"

O elenco de 'Voltar'
Melhor Elenco:
"Voltar"
"Munique"
"Finais Felizes"
"Em Paris"
"Uma Família à Beira de Um Ataque de Nervos"

Revelação do ano:
Owen Kline - "A Lula e a Baleia"
Marcell Nagy - "Sem Destino"
Ellen Page - "Hard Candy"
Zoe Weizenbaum - "Aos Doze e Tantos"
Luna Mijovic - "Filha da Guerra"

CINEMA: OS MELHORES DE 2006: CATEGORIAS TÉCNICAS

Melhor Realizador
M. Night Shyamalan - "A Senhora da Água"
Alfonso Cuarón - "Os Filhos do Homem"
Alejandro González Iñárritu - "Babel"
Sofia Coppola - "Marie Antoinette"
Ang Lee - "O Segredo de Brokeback Mountain"

Melhor Argumento
"Match Point"
"Voltar"
"Munique"
"O Segredo de Brokeback Mountain"
"Em Paris"

Melhor Fotografia
"A Senhora da Água"
"Marie Antoinette"
"Sem Destino"
"Máquina Zero"
"O Novo Mundo"


Melhor Montagem
"Babel"
"Os Filhos do Homem"
"The Departed: Entre Inimigos"
"Hard Candy"
"Munique"

Melhor Banda Sonora
"Marie Antoinette"
"A Senhora da Água"
"Em Paris"
"Candy"
"Walk the Line"

Melhor Direcção Artística
"Marie Antoinette"

"A Senhora da Água"
"Memórias de uma Gueixa"
"O Novo Mundo"
"Boa Noite, e Boa Sorte"

Melhor Guarda-Roupa
"Marie Antoinette"
"Memórias de uma Gueixa"
"O Novo Mundo"
"Orgulho e Preconceito"
"O Libertino"

Melhores Efeitos Visuais
"X-Men - O Confronto Final"
"A Senhora da Água"
"A Ciência dos Sonhos"

FOTOGRAMAS DE 2006 (X)

"Shooting Dogs — Testemunhos de Sangue", Michael Caton-Jones

sexta-feira, janeiro 12, 2007

A VERDADE DA MENTIRA

"Memento", "Insónia" e "Batman: O Início" colocaram o britânico Christopher Nolan entre os realizadores revelados na última década que se tornaram alvo de maior culto, através de três filmes (ou quatro, se se incluir a sua menos conhecida primeira obra, "Following") que marcaram pela sua carga cerebral, fria e engenhosa.
Com uma estética própria, que para além de incorporar referências do film noir as redefine para o novo milénio, Nolan possui já uma filmografia digna de nota, não ofecerendo exemplos de genialidade mas também nunca estando abaixo do interessante.

No seu novo trabalho, "O Terceiro Passo" (The Prestige), o realizador reúne um elenco de luxo - Christian Bale, Hugh Jackman, Scarlett Johansson, Michael Caine e um regressado David Bowie - ao serviço de um thriller (com temperos de fantástico) centrado nos bastidores do ilusionismo durante a Londres vitoriana, seguindo a relação conflituosa de dois mágicos reputados, que de colegas passaram a concorrentes.

A premissa é intrigante, apostando em tons potencialmente tensos, nebulosos e enigmáticos, de resto presentes nos títulos anteriores de Nolan. Aliada ao savoir faire do cineasta e a actores com carisma, sugeria aqui um filme com predicados mais do que suficientes para, pelo menos, ascender além da mediania. Infelizmente, não é o que se verifica, pois embora "O Terceiro Passo" se desembarace com relativa eficácia enquanto aceitável entretenimento, não vai muito além disso, deixando por explorar questões de alguma complexidade que são focadas mas não aprofundadas.

O antagonismo entre a dupla de protagonistas - vincado pela intensa dedicação (ou obsessão) que ambos têm pela arte da manipulação -, assim como as relações entre a ciência e a magia, dava matéria para um denso estudo sobre o comportamento humano e os contrastes entre o real e o ilusório, mas a perspectiva de Nolan é demasiado esquemática e linear.
É certo que o realizador é competente, e por vezes surpreendente, na gestão dos twists que pontuam a acção, mas preocupa-se mais com as sucessões de reviravoltas do que propriamente com a espessura das personagens, que apesar de bem interpretadas nunca parecem tridimensionais.

"O Terceiro Passo" é assim um filme que, ainda que se ancore nas zonas de sombra dos seus protagonistas, nunca penetra nos abismos destes, resultando num trabalho demasiado "limpo" e pouco desafiante. Não que as duas horas de entretenimento que proporciona sejam negligenciáveis, sobretudo quando servidas por bons valores de produção, um elenco e realização seguros e um ritmo que não compromete, mas falta aqui a dose de "magia" que lhe permitiria ascender a uma divisão de outra estirpe.
A espaços, Nolan exibe a precisão milimétrica que o distingue de um vulgar tarefeiro - como Neil Burger, cujo tépido e tematicamente próximo "O Ilusionista" é ainda menos conseguido -, mas não chega para que "O Terceiro Passo" não deixe a sensação de falhanço interessante, por vezes inspirado mas no geral muito acomodado. Um ligeiro passo em falso que não invalida, contudo, que continue a acompanhar-se a caminhada do realizador.

E O VEREDICTO É:
2,5/5 - RAZOÁVEL

quarta-feira, janeiro 10, 2007

ESTREIA DA SEMANA: "GERAÇÃO FAST FOOD"

Há três anos, o documentário "Super Size Me - 30 Dias de Fast Food", de Morgan Spurlock, gerou polémica ao debruçar-se sobre os benefícios e (sobretudo) malefícios dos hambúrgueres e da comida rápida em geral. Agora, "Geração Fast Food" (Fast Food Nation), de Richard Linklater ("Antes do Anoitecer", "Escola de Rock"), volta a focar a questão, inspirando-se no livro homónimo de Eric Schlosser para seguir a história do "Big One", um popular menu de uma das marcas do género, que acaba por interligar o percurso de diversas personagens. O intrigante elenco inclui, entre outros, Catalina Sandino Moreno, Ethan Hawke, Greg Kinnear ou... Avril Lavigne :S

Outras estreias:


"A Coragem do Guerreiro", de Ronny Yu
"A Maldição 2", de Takashi Shimizu
"As Bandeiras dos Nossos Pais", de Clint Eastwood
"Body Rice", de Hugo Vieira da Silva

terça-feira, janeiro 09, 2007

A CIDADE DAS CRIANÇAS PERDIDAS

Do cinema iraniano recente têm chegado a Portugal sobretudo títulos de Abbas Kiarostami ("O Vento Levar-nos-á", "Dez"), mas do mesmo local há outros realizadores que importa conhecer, como Bahman Ghobadi, que tem em "As Tartarugas Também Voam" (Lakposhtha hâm parvaz mikonand) a sua terceira longa-metragem e a segunda a estrear por cá, depois de "Um Tempo para Cavalos Bêbedos".
Premiado nos festivais de Berlim, San Sebastian ou Festróia, entre outros, o filme concentra-se no quotidiano de um grupo de crianças do Curdistão que, pouco antes da invasão do Iraque pelos EUA, em 2003, tentam preparar-se para o pior, uma vez que entre a população de refugiados na zona fronteiriça se pressente o desastre iminente.

Lideradas pelo precoce Soran, mais conhecido como Parabólica, passam os dias a limpar os campos de minas, uma das poucas tarefas que lhes proporciona alguma hipótese de subsistência. Parabólica, figura respeitável na região devido ao seu relativo domínio da língua inglesa e interesse pelas tecnologias, ameaça perder parte do seu carisma devido à chegada de Henkov, um lacónico rapaz sem braços cujas premonições o tornam alvo de atenção. Orfão e traumatizado pela guerra, o recém-chegado viaja com a sua irmã, a silenciosa Agrin, por quem Parabólica se interessa, e com um bebé praticamente cego.

Através da interacção destas personagens, "As Tartarugas Também Voam" traça uma perspectiva, por vezes esperançosa mas tendencialmente angustiante, das frágeis realidades vividas pelos refugiados de guerra, presos a uma vertigem constante devido a um apocalipse bélico que parece prestes a explodir.

Enquanto tal não acontece, acompanham as notícias emitidas pelos canais de televisão ocidentais, na tentiva de encontrar informações que lhes permitam antecipar os ataques, centrando especial atenção em George Bush, que Parabólica encara de forma reverencial (considerando-o a figura nuclear da nação que virá para os salvar, mas que indirecta - e ironicamente - será responsável por um nefasto incidente). Ainda acerca do impacto da televisão, uma das cenas mais bizarras é aquela em que um grupo de refugiados assiste, durante alguns segundos, a um canal de música, cujo visonamento é proibido na região.

Ghobadi proporciona um filme incisivo e comovente, distanciando-se de facilitismos dramáticos e gerando duas ou três sequências de tensão em bruto, apostando num arrepiante realismo pontuado por breves momentos ora bizarros ora poéticos.
Esta aspereza faz de "As Tartarugas Também Voam" uma obra muitas vezes difícil de suportar, mas é igualmente árduo não reconhecer a sua acutilância, pertinência e genuinidade. De resto, só a excelente direcção dos jovens actores, não-profissionais mas todos com interpretações de invejável espontaneidade (com destaque para Soran Ebrahim, no papel de Parabólica), já seria suficiente para aderir a esta inquietante experiência cinematográfica.

E O VEREDICTO É:
3/5 - BOM

BLINKS & LINKS (59)

Obrigado aos responsáveis pelos blogs 9-9, A Cinematic Vision, Crónicas do Joel, Did U Hear That?, DitLuiToi, DVD Collection, DVD Paradiso, Eletric Park, Era Uma Vez...,Impressões da Jonicas e LeStrange por me blinkarem ;)

segunda-feira, janeiro 08, 2007

CINEMA - TOP 10 2006: OS PIORES

Se houve alguns grandes filmes em 2006 (infelizmente, não tantos quanto desejaria), a quantidade de obras fracas e dispensáveis foi bastante superior. Estas envolveram tanto o cinema tendencialmente comercial, na sua vertente mais estereotipada e preguiçosa («Scary Movie 4 — Que Susto de Filme!», «O Génio do Mal», «Ritmo e Sedução», «Velocidade Furiosa — Ligação Tóquio») como falhadas e herméticas propostas "de autor" sem fôlego para trabalhar, de forma interessante, as questões pertinentes que abordam («Diários da Bósnia», «O Céu Gira», «Juventude em Marcha», «Génesis»,...). Esperemos que em 2007 o saldo seja mais positivo...

1 - «Diários da Bósnia», de Joaquim Sapinho
2 - «O Céu Gira», de Mercedes Álvarez
3 - «Juventude em Marcha», de Pedro Costa
4 - «Scary Movie 4 — Que Susto de Filme!», de David Zucker
5 - «Ghost in the Shell 2 — Cidade Assombrada 2: A Inocência», de Mamoru Oshii
6 - «O Génio do Mal», de John Moore
7 - «Mafioso Quanto Baste...», de Sidney Lumet
8 - «Génesis», de Claude Nuridsany, Marie Pérennou
9 - «Ritmo e Sedução», de Liz Friedlander
10 - «Velocidade Furiosa — Ligação Tóquio», de Justin Lin

NOVIDADES NA CINESFERA

Organizados pelo Paulo e pelo Miguel (do extinto Black Spot), os Golden Movie Awards relativos a 2006 já começaram a aceitar as votações para o melhor que o ano trouxe ao cinema e à televisão. A participação está aberta a todos, cinéfilos e não só, e a primeira fase decorre até dia 15. Todos os pormenores no site oficial.
E já agora, fica ainda a sugestão para um novo fórum de cinema, Peeping Tom, também recentemente criado pelo Paulo, que vem preencher o espaço livre deixado pelo final do saudoso Cinestesia (extinto devido a ataques de hackers).
Ficam as propostas, bons filmes e boas discussões.

domingo, janeiro 07, 2007

MORTE AO SEGUNDO DISCO?

No seu álbum de estreia, "Hot Fuss", de 2004, os Killers recuperaram elementos de bandas britânicas como os Duran Duran, New Order ou Smiths, recontextualizando-os em canções de travo contemporâneo mas de indiscutíveis contornos eighties.
Ao segundo disco, "Sam's Town", a banda de Las Vegas reclama influências da mesma época, mas desta vez norte-americanas, aspirando paralelismos a registos de Bruce Springsteen editados nesse período. Esta alteração na sonoridade foi acompanhada, de resto, por uma mudança de look, que não se percebe muito bem se é suposto ser paródico (veja-se o bigode do vocalista Brandon Flowers, o pormenor mais kitsch da sua nova imagem).

O que também não se compreende ao certo se pretende ser paródico é o álbum, que nos melhores momentos nem lembra tanto as canções do Boss mas antes dos U2 de meados de 80 e, nos piores (e não são tão poucos como isso), aproxima-se dos momentos mais duvidosos de uns Queen ou mesmo dos maneirismos de um Meat Loaf.

O problema é que a banda parece querer ser levada a sério, como o evidencia a pretensão conceptual do disco. Desde canções intituladas "Enterlude" (estranhamente, o segundo tema) ou "Exitlude" até à abordagem de temáticas religiosas ou de uma certa identidade americana, não falta pompa a "Sam's Town", mas seria preferível que o grupo mantivesse a postura despretensiosa do primeiro disco em vez de procurar uma densidade que não tem capacidade para abordar.

Em vez de grandioso, o álbum soa apenas balofo e excessivo, não sendo por isso a produção de Flood e Alan Moulder que consegue disfarçar o esquematismo da maioria das composições. Os sintetizadores, recurso recorrente no registo de estreia, cedem o protagonismo a guitarras sem sinais particulares, e a voz de Brandon Flowers reforça o tom melodramático, mas só a espaços é capaz de evocar algum sentido de urgência.

Isto faz de "Sam's Town" um mau disco? Nem por isso, assim como "Hot Fuss" também não era uma obra brilhante, mas pelo menos possuía maior sensibilidade pop, sobretudo em duas ou três canções de quilate superior como a frenética "Somebody Told Me" ou esse hino chamado "Mr. Brightside". O mesmo nível nunca é atingido aqui, o que não invalida que não se encontrem pontuais bons momentos, como o comprovam o eficaz primeiro single "When You Were Young", o catchy "Read My Mind" ou o promissor tema-título, curiosamente os mais próximos dos ambientes do registo de estreia.

Mas ouvir "Sam's Town" do início ao fim torna-se extenuante e a recta final é particularmente desinspirada, com um lote de temas que já seria arriscado escolher para lados-b, atirando os Killers para uma terra de ninguém e adicionando-os à lista dos que sofrem do sídrome do "difícil segundo álbum". Resta desejar-lhes melhoras rápidas.

E O VEREDICTO É:
2,5/5 - RAZOÁVEL

The Killers - "When You Were Young"

sábado, janeiro 06, 2007

MAIS LOGO, NA TV:


22h25: "O Tubarão", de Steven Spielberg (AXN)
23h00: "Dolls", de Takeshi Kitano (A Dois)
23h35: "O Grande Salto", de Joel Coen (Fox)
00h15: "007 - Alvo em Movimento", de John Glen (SIC)
00h15: "Sleepers - Sentimento de Revolta", de Barry Levinson (TVI)
00h45: "Casablanca", de Michael Curtiz (A Dois)
01h00: "Gattaca", de Andrew Niccol (Hollywood)

Assim até vale a pena adiar a saturday night fever, não?

Ethan Hawke em 'Gattaca'

quinta-feira, janeiro 04, 2007

ESTREIA DA SEMANA: "APOCALYPTO"

Após ter gerado um dos filmes mais controversos e mediáticos dos últimos anos, "A Paixão de Cristo", Mel Gibson volta a assumir a realização de outra obra, "Apocalypto". O foco centra-se agora na cultura Maia, em particular na jornada de um homem que é escolhido para ser sacrificado mas que tenta regressar a casa. A abordagem crua, com sangue, suor e lágrimas, presente na película anterior de Gibson, parece manter-se, e o resultado pode ser visto a partir de hoje.

Outras estreias:

"À Noite, no Museu", de Shawn Levy
"O Odor do Sangue", de Mario Martone

quarta-feira, janeiro 03, 2007

RECOMEÇAR DO ZERO

Quando foi anunciado que, após a saída de Pierce Brosnan, Daniel Craig tinha sido o escolhido para protagonizar mais uma aventura de 007, não foram poucos os fãs que reagiram com cepticismo a essa opção. Fosse por ser loiro, demasiado musculado ou excessivamente rude e inexpressivo, eram vários os motivos para que, segundo algumas vozes, o novo James Bond deixasse muitas reticências.
Tais suspeitas revelaram-se, no entanto, infundadas, uma vez que Craig não só já tinha provado, e várias vezes, que é um actor a ter em conta (confira-se em "Sylvia", "O Fardo do Amor" ou "Munique", entre outros), como é um dos grandes responsáveis pela injecção de vitalidade que "007 — Casino Royale" implementa a uma saga que já se movia há muito em piloto automático.

O filme, baseado no primeiro livro (de título homónimo) que Ian Fleming escreveu sobre o famoso agente secreto, em 1953, acompanha a sua primeira missão enquanto 007, aquela em que o espião já tem licença para matar.
Se o prólogo, a preto-e-branco, oferece um início intrigante, o mesmo não se pode dizer dos restantes primeiros minutos do filme, gastos numa longa sequência de perseguição que se torna cansativa, onde Craig parece encarnar não o novo James Bond mas antes um herói de acção semelhante a um cruzamento entre Jean-Claude Van Damme e Arnold Schwarzenegger, com muito músculo e pouca conversa.

Os minutos seguintes optam por uma uma lógica já vista e revista em muitos outros filmes de espionagem embalada com adrenalina q.b., que o realizador de serviço, Martin Campbell, estrutura com competência mas sem especial inspiração. Até aqui nada de novo, e embora não haja muitos traços reconhecíveis da saga de 007 a mudança não parece ser para melhor, antes no sentido de uma linha de montagem anódina.

Tudo se altera, contudo, a partir do momento em que Vesper Lynd entra em cena, interpretada por uma brilhante Eva Green, que alia inteligência e elegância de forma invejável e partilha com Craig uma química imediatamente perceptível. O diálogo entre ambos, durante a viagem de comboio, expõe uma escrita engenhosa condimentada por um sarcasmo irresistível, e a relação do duo, a partir daqui primordial para a acção do filme, é um dos grandes elementos que contribuem para a solidez deste.

O facto do argumento de "007 — Casino Royale" estar uns pontos acima de grande parte dos de outras aventuras do espião deverá muito a Paul Haggis, que depois de "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" e "Colisão" divide aqui os créditos da escrita com Neal Purvis e Robert Wade ("007 - Morre Noutro Dia", "Johnny English").
O filme não se esgota, assim, num emaranhado de sequências de acção com variações dos níveis de pirotecnia, pois surpreende ao mergulhar numa densidade emocional difícil de encontrar num entretenimento pipoqueiro.
Para além de incluir um dos pares mais carismáticos do ano, a película leva James Bond a territórios até então distantes da personagem, como os das marcantes cenas de tortura, onde um carregado humor negro se entrecruza com uma tensão claustrofóbica, evidenciando a carga mais crua, realista e áspera desta aventura (que dispensa, e ainda bem, a proliferação de gadjets tão sofisticados quanto inverosímeis).

Martin Campbell, depois da formatação dos primeiro momentos, apresenta um seguro trabalho de realização, e tem o mérito de conseguir manter o interesse durante duas horas e meia, gerindo com solidez os muitos cliffhangers que marcam a acção, desde uma visceral perseguição de automóvel até ao angustiante desenlace.
As cenas de antologia são, todavia, as mais pausadas, como aquela em que Craig emerge do mar em fato de banho, à la Ursula Andress (longe vão os tempos em que apenas as bons-girls eram o objecto sexual), uma outra que que foca o actor e Eva Green no duche, tão bela quanto amargurada, ou ainda as que ambos protagonizam já perto do final, também na água, numa das sequências mais emotivas do filme.

Ousado e envolvente, "007 — Casino Royale" confirma que Daniel Craig é uma aposta ganha, uma vez que o actor encarna sem mácula um James Bond para o novo milénio, um herói que, apesar da pose arrogante, fria e máscula, não consegue evitar a solidão gerada por um assombrado romantismo.
Menos convincente é a escolha de Chris Cornell para a autoria da canção principal, que tanto poderia pertencer a um filme do 007 como a uma qualquer playlist do mais indistinto rock-FM. Mas se a canção é uma das piores da saga, pelo menos o filme é um dos melhores. Antes assim.

E O VEREDICTO É:
3,5/5 - BOM

FOTOGRAMAS DE 2006 (IX)

"O Paraíso, Agora!", de Hany Abu-Assad

terça-feira, janeiro 02, 2007

NOITE ESCURA

Segunda parte de uma trilogia dedicada à guerra colonial (a primeira foi "Inferno", de 1999), "20,13" decorre na véspera de Natal de 1969, num quartel de Moçambique, e centra-se nos acontecimentos de uma noite determinante para todos os soldados e restantes presentes no local.

À semelhança da maioria dos títulos da sua filmografia, Joaquim Leitão apresenta aqui uma obra que, contrariamente a algum cinema nacional, é feita a pensar no grande público, mas não deixa por isso de ser uma proposta que responde aos graus de exigência necessários para que se encontra aqui uma interessante experiência cinematográfica.

Interligando uma história marcada por algum suspense (há um assassinato cujo responsável só é revelado no final) e conturbadas relações amorosas com um olhar sobre o quotidiano dos recrutas da base militar, "20,13" oferece uma eficaz reflexão sobre a vida e convivência num quartel, assim como dos sacrifícios que os que aí se encontram estão dispostos - ou são obrigados - a fazer, onde persiste um forte sentimento de perda aliado a traços de esperança que se insinuam a espaços.

Do meio deste retrato de grupo emergem algumas figuras mais determinantes para a narrativa, casos do capitão Costa e do alferes Gaio, pólos opostos (ou, como o filme vai revelando, talvez nem tanto) devido às diferenças de posicionamento perante a guerra. O primeiro, austero e empenhado, defende os propósitos e interesses do regime sem hesitações; já o segundo adopta uma postura mais ambígua, cumprindo a sua missão sem falhas mas mantendo sempre reservas quanto ao conflito em que está envolvido.
A posição respeitável e sem manchas do capitão ameaça, no entanto, ficar comprometida devido à sua relação (naturalmente secreta) com um enfermeiro mais novo, sobretudo quando a sua esposa faz uma visita-surpresa ao quartel e, mais ainda, depois do jovem ser encontrado morto, vítima de homicídio.

Joaquim Leitão oferece uma obra sóbria, alternando com segurança cenas de acção com momentos mais apaziguados onde o combate é então verbal, em particular nas cenas de discussão conjugal.
O realismo surge como elemento sempre presente, auxiliado por um elenco coeso (Marco d'Almeida, no papel de Gaio, é exemplar e magnético) e por uma reconstituição histórica igualmente fulcral para que as peripécias sejam verosímeis. Não menos relevante é a banda-sonora, com destaque para as canções de José Afonso ("Menina dos Olhos Tristes") e Madalena Iglésias ("Ele e Ela"), ambas cantadas durante uma festa mas despoletando ressonâncias emocionais bem díspares em algumas personagens.

Nem tudo resulta, contudo, já que o mistério policial (de contornos bíblicos, tanto que o número de um dos versículos e capítulos até originou o título do filme) é mais previsível do que intrigante, sendo a última cena dispensável, uma vez que apenas reforça uma certeza que sequências anteriores já haviam confirmado.
Certas personagens ganhariam com um maior desenvolvimento (pelo menos as do médico e esposa), mas o retrato colectivo é bem conseguido e, mesmo nunca sendo genial, há que reconhecer que "20,13" é uma obra séria, inteligente e escorreita, características que poucos filmes portugueses estreados em 2006 podem orgulhar-se de possuir. Razões mais do que suficientes, então, para não deixar passar esta boa proposta, talvez a melhor de Joaquim Leitão.

E O VEREDICTO É:
3/5 - BOM