terça-feira, novembro 14, 2006

GANGS DE BOSTON

Nos seus dois filmes anteriores, "Gangs de Nova Iorque" e "O Aviador", Martin Scorsese ofereceu grandes produções de época, luxuosamente embrulhadas por um apuro técnico irrepreensível e apenas ao alcance de alguns que foi, no entanto, desperdiçado por debilidades na construção da narrativa e das personagens. Não deixavam de possuir algumas sequências memoráveis, mas como um todo o balanço qualitativo era irregular e faltava-lhes o nervo e a densidade pelos quais o cineasta se notabilizou ao longo dos anos.

"The Departed: Entre Inimigos" assinala o regresso aos ambientes urbanos e claustrofóbicos que definiram o percurso inicial do realizador, propondo um misto de thriller e drama ancorado em dois polícias, que têm em comum o facto de serem agentes infiltrados.
Um, Billy Costigan, está no início da carreira e o seu passado obscuro torna-o na escolha perfeita para se infiltrar num gang da máfia irlandesa de Boston. O outro, Colin Sullivan, distinguiu-se pelo seu percurso bem-sucedido na Unidade Especial de Investigação mas esconde um perigoso segredo dos seus colegas, uma vez que integrou a polícia para reportar ao líder do mesmo gang as principais estratégias desta.

Parte jogo do gato-e-do-rato, desenvolvendo uma intrincada teia de ligações e perseguições, parte mergulho nos dilemas e medos existenciais dos dois protagonistas, que se debatem com as contradições das suas identidades, o filme é um exercício de estilo bem oleado, sabendo como conduzir uma narrativa intrigante sustentada por personagens complexas.

Remake do primeiro capítulo de "Infiltrados" (Infernal Affairs), a trilogia policial criada pela dupla de Hong Kong Andrew Lau e Alan Mak, "The Departed: Entre Inimigos" recupera de facto alguns dos elementos essenciais da acção dessa película mas deixa bem visível a mudança de realizador.
Aproximando-se das atmosferas de outros títulos de Scorsese como "Tudo Bons Rapazes", o filme não deixa de efectuar, de forma mais ou menos directa, um olhar sobre a América, como já é habitual na filmografia do cineasta, em particular sobre a miscenização de culturas, aspecto determinante para a construção da personagem de Billy Costigan.

O realizador volta a apresentar aqui uma obra vincada pela elegância formal, com uma inatacável solidez na montagem, capaz de imprimir um ritmo que, ao contrário do dos dois filmes anteriores, nunca acusa as duas horas e meia de duração. A banda-sonora a cargo de Howard Shore, discreta e cativante, é apropriada aos ambientes do filme, modelados em parte pela fotografia de Michael Ballhaus, investindo essencialmente em tons castanhos-alaranjados, em tudo contrastantes com os azuis metálicos de "Infiltrados".

"The Departed: Entre Inimigos" conta com uma tensão bem gerida e, para além do realizador, há que reconhecer o mérito dos actores, quase todos nomes de peso, tanto os principais como os secundários.
Dos protagonistas, Matt Damon dá mais uma prova de talento numa interpretação segura, mas é Leonardo DiCaprio o que mais surpreende no desempenho de Billy Costigan, através do qual o actor oferece um sóbrio retrato da solidão e inadaptação, numa personagem em fuga e quase sem portos de abrigo, a mais interessante, comovente e complexa do filme. Jack Nicholson proporciona mais uma lição de interpretação (uma das melhores dos últimos tempos), conciliando um sentido de humor (negro) e um peculiar calculismo no papel do chefe do gang e a menos mediática Vera Farmiga confirma a boa impressão deixada em "Medo de Morte", no início deste ano.

Scorsese edifica aqui uma obra estimulante e acima da média mas que, infelizmente, não chega a atingir o estatuto de imprescindível devido às opções tomadas na construção da personagem de Matt Damon. Embora servido por um bom desempenho, Colin Sullivan não contém a ambiguidade nem a inquietação da sua personagem análoga de "Infiltrados", movendo-se sempre em nome de interesses pessoais e nunca questionando a sua conduta. As preocupações que advêm do seu cargo de "toupeira" giram somente em torno da sua sobrevivência e prosperidade, e teria sido mais interessante se a personagem colocasse a sua moral em causa, tornando a película menos maniqueísta e reforçando as semelhanças dos dois protagonistas.
Pior é o final que o filme lhe reserva em virtude dessa postura, mais convencional e menos desafiante do que o do filme de Andrew Lau e Alan Mak. É pena que um filme com um desenvolvimento tão inteligente e minuciosamente arquitectado termine de uma forma pouco corajosa, mas "The Departed: Entre Inimigos" sobrevive bem a esse desequilíbrio e funciona tanto como um entretenimento de topo como enquanto uma experiência cinematográfica de méritos inegáveis, ou não fosse o melhor Scorsese em muitos anos.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

11 comentários:

Hugo disse...

É mais do que bom. Está ali todo o Scorsese no auge do seus dotes criativos. Este "the departed" é "só" um filme feito para quem tem saudades de ver bom Cinema (frase que ouvi na rádio - Antena 1 - e que achei particularmente feliz).

gonn1000 disse...

É bom Cinema, sim, mas talvez tivesse gostado mais se não tivesse visto "Infernal Affairs". Embora o remake não seja exactamente uma cópia, as linhas gerais do argumento são semelhantes e retira um pouco do impacto. De qualquer forma, é um filme a ver.

Loot disse...

Um pessoa pode ter uma análise crítica sobre o filme, analisar a forma como é realizado o poder do argumento etc, independentemente de já saber a estória, mas a verdade é que no final do departed toda a palteia fica chocada e as pessoas que viram o infernal affairs não! por isso concordo contigo é um grande filme mas retira um pouco do impacto já ter visto o original, não é propriamente uma supresa.
Mas aconselho a todos mesmo aos que já viram o infernal, vale bem a pena .

gonn1000 disse...

É um remake assumido, e não há problema nenhum nisso, mas esse final, além de não surpreender muito quem conhece o original, também não se encontra à altura deste. Mas nota-se a marca de Scorsese nesta nova versão, e felizmente a de um Scorsese mais inspirado do que nos últimos tempos.

Loot disse...

É verdade, mas a escolha deste final deve estar ligada ao tipo de personagem em que transformaram o mafioso infiltrado, claro que não tinha de ser assim obrigatoriamente.
Mas é Scorsece, tem representações fabulosas, uma boa banda sonora e concordo destes últimos filmes dele é o melhor.

gonn1000 disse...

Sim, não é prefeiro mas está acima da média e é um dos melhores filmes em cartaz no último trimestre de 2006.

gonn1000 disse...

Scorsese deu-lhe um evidente cunho próprio e fez um bom filme a partir de outro. Não o colocaria na lista de melhores do ano, mas fica na das boas surpresas.

Loot disse...

Não entendas mal, eu (acho que o gonn também) não achámos o final mau, achamos foi o final do outro melhor. Mas sem dúvida que o filme tem o estilo de Martin Scorsece e está muito bem feito.

gonn1000 disse...

Achei o final um pouco desapontante em relação a outros momentos do filme, melhor conseguidos, mas mesmo assim não coloca em causa a consistência do resultado global.

Anónimo disse...

Quero ir ver mas o raio do tempo é tão curto, boa dica.

gonn1000 disse...

Tira-te algum tempo, já que dura duas horas e meia, mas são bem gastas.