Unindo o drama à comédia e ao musical, "20 Centímetros" é o mais recente filme de Ramón Salazar, um dos novos cineastas espanhóis que assina aqui a sua segunda longa-metragem, que se sucede à elogiada "Piedras", de 2002.
Seguindo o dia-a-dia de Marieta, um travesti cuja maior ambição é realizar uma operação que lhe permita mudar de sexo, o filme é um irreverente e desregrado olhar sobre o submundo urbano e os outcasts que o habitam, onde subsistir está longe de ser uma garantia e os sonhos de prosperidade dificilmente se tornarão realidade.
"20 Centímetros", embora ofereça um retrato seco e realista do meio em que se centra, é frequentemente contaminado por delirantes e imprevisíveis momentos onde as sequências oníricas da protagonista se salientam, gerando interlúdios musicais que fornecem alguma réstea de esperança aos ambientes de negrume presentes em grande parte do filme.
Ramón Salazar proporciona uma película ousada, focando a obstinação de Marieta em se livrar dos 20 centímetros - daí o título da obra - que a impedem de se tornar a mulher que sonha ser, premissa algo arriscada mas que é bem trabalhada pelo realizador.
Muito do apelo da obra deriva das personagens, uma bizarra colecção de losers destinados a viver nas margens da sociedade, uma vez que não se enquadram nos parâmetros de "normalidade" vigentes e que parecem ocupar um mundo à parte.
Fulcral para que essas figuras se tornem bem conseguidas é a contribuição do elenco, que se revela exímio - ou não fosse esse um dos trunfos do cinema espanhol -, encarnando personagens atípicas mas estranhamente verosímeis.
Mónica Cervera, em especial, é soberba, compondo uma protagonista singular e comovente, superando a sua divertida interpretação em "Crime Ferpeito", de Álex de la Iglesia (e apesar de interpretar uma "prostituta com coração de ouro", um tipo de papel algo estereotipado, consegue injectar-lhe personalidade).
A actriz apresenta a carga de androginia ideal para o papel, aproximando-se de uma estrela emblemática do cinema espanhol, Rossy de Palma, que curiosamente também participa no filme, contribuindo reforçando a sua aura incomum e offbeat.
Ramón Salazar gera absorventes atmosferas vincadas por um realismo cru, recorrendo a astutos movimentos de câmara, expondo um trabalho de realização vivo e dinâmico. A sofisticada fotografia ajuda à criação desses ambientes, especialmente intrigantes nas cenas de domínios nocturnos, com um rigoroso cuidado plástico.
"20 Centímetros" recupera alguns traços do cinema de Pedro Almodóvar, recorrendo a uma saudável combinação de melodrama e humor negro para abordar a temática da diferença, do conceito de família ou da sexualidade, centrando-se nas experiências dos rejeitados e desprezados pela sociedade.
Outro elemento almodovariano são as sequências que resgatam um imaginário camp, evidentes nos múltiplos momentos musicais do filme.
Cenograficamente sólidos, estes números são reflexo dos sonhos da protagonista, e embora se tornem demasiado recorrentes geram certos momentos inspirados, cujo melhor exemplo é "Quiero ser santa", protagonizado por zombies queer capazes de fazer inveja a Marilyn Manson.
Curiosa, também, é a escolha da banda-sonora, com versões de temas descaradamente kitsch como "True Blue", de Madonna, ou "I Want to Break Free", dos Queen.
Longe de ser um filme para todos os gostos, "20 Centímetros" é uma obra suficientemente inventiva para figurar entre as boas surpresas de 2005, até porque, convenhamos, não haverá muitas películas protagonizadas por uma prostituta travesti narcoléptica e secundada por uma série de personagens não menos peculiares. Mais uma prova de vitalidade do actual cinema espanhol...
E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM
2 comentários:
Quando comecei a ler o título e o seu significado, lembrei-me (não sei porquê)do filme de Nicolas Cage "8 milímetros". Um pensamento vago que me deu uma valente gargalhada! LOL
LOL...mas olha que, tirando o título, não têm muito mais em comum :)
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