quarta-feira, novembro 10, 2004

UMA MENTE BRILHANTE

A segunda aventura na realização de Michel Gondry (a primeira, "Human Nature", não estreou entre nós) recorre a actores consagrados como Jim Carrey e Kate Winslet para proporcionar um dos filmes mais inclassificáveis que 2004 viu nascer até agora.

"O Despertar da Mente" (ou, no original, Eternal Sunshine of the Spotless Mind) recusa fórmulas e situações-tipo, gerando uma peculiar fusão de comédia romântica/ negra, drama, suspense e mesmo alguns elementos de ficção científica. No entanto, identificar aqui eventuais géneros cinematográficos é o que menos interessa, ou não fosse o argumento criado por Charlie Kaufman, autor responsável por "Queres Ser John Malkovich?" (Being John Malkovich) ou "Inadaptado" (Adaptation), dois dos filmes mais bizarros e inventivos dos últimos anos. Nessas duas obras, realizadas por Spike Jonze, registava-se uma intrigante atmosfera de delírio e esquizofrenia, através de histórias que se debruçavam sobre questões relacionadas com a identidade e a capacidade de integração. Kaufman tornou-se um dos argumentistas mais originais do cinema americano recente e expõe agora novas e criativas ideias em conjunto com Michel Gondry.

"O Despertar da Mente" foca o fim da relação amorosa de um casal, Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet), processo que deixou amargas consequências em ambos. Determinada a evitar a dor causada pela separação, Clementine submete-se a uma operação médica com o objectivo de apagar da memória quaisquer recordações do seu ex-namorado. Joel, ao tomar conhecimento da situação, decide fazer o mesmo, mas até que ponto será benéfico e produtivo apagar da mente certas recordações? Baseando-se nesta premissa, Michel Gondry oferece uma obra labiríntica e surpreendente, desenvolvendo um complexo retrato das relações humanas, do amor, dos sonhos ou dos inúmeros recantos da mente.

Apostando numa lógica narrativa não-linear, o filme apresenta um estimulante desafio intelectual que mantém, no entanto, uma forte componente lúdica repleta de momentos inesperados (estamos longe, apesar de tudo, do "filme-pipoca" de riso fácil). Embora demore um pouco a arrancar, "O Despertar da Mente" proporciona uma imprevisível viagem pela mente humana, expondo as suas motivações, medos, receios e desejos, apresentando múltiplos momentos simultaneamente estranhos e verosímeis.

Os traços surrealistas que caracterizam os argumentos de Charlie Kaufman povoam diversas cenas do filme, mas esta obra de Michel Gondry contém uma perspectiva menos cerebral do que obras como "Queres Ser John Malkovich?" ou "Inadaptado". Ao contrário destes dois filmes, por vezes demasiado frios e distantes, "O Despertar da Mente" apresenta um tom mais humano, frágil e emotivo, com personagens suficientemente credíveis para estabelecer uma relação de identificação com o espectador.

Os actores contribuem muito para essa tridimensionalidade das personagens, não só o par romântico principal mas também o trio de secundários constituído por Kirsten Dunst, Mark Ruffalo e Elijah Wood (apenas três dos mais promissores actores de Hollywood). Jim Carrey é talvez a presença que mais impressiona, num registo melancólico e contido, divergente de grande parte dos seus papéis mais mediáticos. Não há neste filme marcas da sua postura histriónica e excessiva que caracterizou muitas das comédias que sedimentaram a sua carreira. A subtileza e sobriedade que apresenta aqui são determinantes para a composição da sua personagem, dotando-a de uma convincente tridimensionalidade e vulnerabilidade. O registo introvertido e tímido do loser Joel constitui ainda um curioso contraponto com o à-vontade e carácter excêntrico de Clementine (Kate Winslet), gerando um duo aparentemente contraditório mas com uma forte química.

O trabalho de Michel Gondry é mais um dos pontos fortes do filme. Investindo numa realização sofisticada e criativa, o cineasta promove uma entusiasmante energia visual que complementa eficazmente o tom algo onírico do argumento. Com movimentos de câmara originais e diversos truques de iluminação e gestão dos espaços, Gondry consegue estabelecer um ambiente próprio e memorável, essencial para que a obra resulte. O realizador surpreende em vários momentos, mas nunca aposta numa overdose de efeitos pirotécnicos através de cenas excessivamente espectaculares, adaptando-se assim à atmosfera intimista do argumento.

Gondry dá ainda seguimento à tendência recente que marca a passagem dos realizadores de videoclips para áreas directamente relacionadas com o cinema (o cineasta foi responsável por vídeos de alguns dos principais músicos da actualidade, como Bjork, White Stripes, Massive Attack ou Radiohead). O cineasta junta-se, assim, a um prestigiado grupo que engloba, entre outros, David Fincher ("Clube de Combate", "Sete Pecados Mortais") ou Mark Romanek ("Câmara Indiscreta"). O realizador não descura a componente musical do filme, seleccionando um apropriado conjunto de canções que inclui temas instrumentais compostos por Jon Brion (cantautor/ produtor cujos créditos abrangem a colaboração nas bandas-sonoras de "Magnólia" ou "Embriagado de Amor", de Paul Thomas Anderson) e uma brilhante versão de Beck para "Everybody`s Gotta Love Sometimes", original dos Korgis.

Abordando as dificuldades das relações humanas de forma sensível, inteligente e absorvente, "O Despertar da Mente" é uma experiência invulgar e sedutora que dispensa rótulos e catalogações. É um daqueles raros objectos cinematográficos que surge poucas vezes por ano, transpirando vitalidade e ousadia, e destaca-se já como uma das obras mais inovadoras e hipnóticas de 2004. A ver e a relembrar, este é daqueles filmes que insiste em permanecer na memória.

E O VEREDICTO É: 4,5/5 - MUITO BOM

2 comentários:

Anónimo disse...

eu pedi uma clara explicação do filme em relação às dores de idéia e naexplicação não tinha nada disso!

gonn1000 disse...

Não entendi.