quinta-feira, agosto 24, 2006

CIDADE SOBRE PRESSÃO

Para além dos filmes de super-heróis ou das versões de filmes (maioritariamente de terror) orientais, uma das tendências recentes no cinema americano de perfil mainstream tem sido a adaptação de séries televisivas.
Depois de películas como "Os Anjos de Charlie" ou "Starsky & Hutch", chega a vez de "Miami Vice", a popular série dos anos 80 que marcou uma geração pelo concentrado de acção desbragada, romances sucessivos, cenários ofuscantes e um guarda-roupa não menos expressivo, não esquecendo os inevitáveis e recorrentes flamingos.
Catapultando Don Johnson e Phillip Michael Thomas para ícones dos anos 80, a série tornou-se num peculiar e pouco consensual ponto de confluência entre o kitsh e o cool, sendo agora recuperada duas décadas depois.

Contudo, visto o filme, percebe-se que de "Miami Vice" este pouco mais tem do que o título, a cidade onde a acção se desenrola e os nomes das duas personagens principais, os detectives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs. De resto, o que transparece é a personalidade de Michael Mann, o cineasta por detrás do projecto, que oferece aqui mais um retrato das tensões urbanas contemporâneas, com deambulações pelas habituais paisagens nocturnas que marcam (quase) toda a sua obra.

Se no argumento "Miami Vice" não anda muito longe de qualquer outro filme de acção, uma vez que esta história de combate ao narcotráfico vincada por reviravoltas e traições já está vista e revista, torna-se numa recomendável experiência cinematográfica pela forma como Mann trabalha as atmosferas, que à semelhança do que já ocorria em "Colateral" ameaçam transformar-se numa personagem.

Tal como no seu filme anterior, a opção pelas câmaras digitais revela-se uma escolha apropriada, já que o realizador as usa de forma igualmente criativa e desafiante, fazendo deste um incomum blockbuster que parte de uma premissa banal mas resulta num trabalho experimental.
A minúcia e perfeccionismo na captação dos ambientes nocturnos concede ao filme uma vibração atípica, condensando um estilo visual apurado, de contornos negros e sombrios, em tudo antagónicos aos tons reluzentes e garridos da série televisiva.

A envolvência das imagens encontra contraponto na adequada banda-sonora, que mesmo de gosto duvidoso (Mogwai, Moby ou Goldfrapp são boas surpresas, algumas canções nu-metal e latinas nem por isso) faz sentido tendo em conta os ambientes em que "Miami Vice" decorre.
Esta interligação de imagem e som é determinante para a tensão dramática do filme, coadunando-se com a ténue variação emocional das personagens, figuras essencialmente caracterizadas pela solidão e desencanto existencial.

Destas, apenas o par composto por Colin Farrell e Gong Li é explorado com alguma densidade, pois as restantes não são mais do que elementos cuja finalidade é fazer o argumento avançar. Se a relação ambígua e conturbada do casal que opera em facções opostas é suficientemente interessante para conceder peso dramático à película, não deixa de ser evidente a falta de espessura (e de relevância) da personagem de Jamie Foxx, que apesar de co-protagonista não regista nenhum impacto digno de nota.

Esta diluição das personagens nas atmosferas do filme não chega a ser uma falha, dado que Mann volta a provar ser um esteta de excepção, mas no desenlace o destino do detective interpretado por Foxx e da sua companheira arrisca-se a ser mais ou menos indiferente para o espectador, a quem não foram apresentados grandes motivos para se preocupar com o duo.

Para além desta limitação, "Miami Vice" sofre ainda de alguns problemas de ritmo, oferecendo mais de duas horas de interesse desigual, com sequências por vezes demasiado longas ou arbitrárias. Apesar disse desequilíbrio, impõe-se um thriller com uma elegância, sofisticação e inteligência acima da média, confirmando Mann como um cineasta inventivo e tornando-se mesmo num dos seus filmes mais conseguidos. Cinema comercial de recorte superior, a ver (e apreciar) sem preconceitos.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

10 comentários:

Spaceboy disse...

Como já sabes, gostei muito do filme, as atmosferas mais negras dentro do filme do género foram muito bem conseguidas. E apesar de não ir muito à bola com o Coli Farrell, aqui até esteve bem. E realmente dispensava-se aquelas músicas de Audioslave e afins...mas isto não impede de forma alguma que "Miami Vice" seja um grande filme.

gonn1000 disse...

Pois é, vocês gostaram todos mais do que eu, mas mesmo assim ainda acho que é bem recomendável. O Colin não me surpreendeu porque já tinha gostado dele em filmes anteriores ("Tigerland", "Relatório Minoritário", "Cabine Telefónica",...).

Francisco Mendes disse...

Se todos os filmes de Verão fossem assim... era bom era...

gonn1000 disse...

Pois era, mas enquanto houver um mann e mais uns quantos ao mesmo nível, já não é mau...

Anónimo disse...

Depois de ler a tua crítica pensei que lhe fosses dar menos pontuação. Talvez um 3/5...Mas ainda bem que deste mais. Assim está mais de acordo com a minha classificação :P!

Abraço

gonn1000 disse...

Sim, entre o 3/5 e o 3,5/5, mas o que importa é que o balanço é positivo. Fica bem ()

Hugo disse...

Só por ter re-inventado o noir, adapando aos tempos que correm, dava-lhe mesmo um 4 a puxar para o 5. Este Michael Mann, de certo modo, faz lembrar Jean-Pierre Melville. Se fosse dotado do seu perfeccionismo e rigor formal é que era...

gonn1000 disse...

Uma classificação tão alta já me parece exagerada, é certo que Mann reinventa o noir mas já o faz há vários anos, "Miami Vice" é mais um bom exemplo disso mas não me parece decisivo.

Susana Fonseca disse...

Confesso que ainda não vi. Mas tenho alguma curiosidade, em adolescente (ou criança, nem sei) vi a série telivisiva, com o desaparecido Don Johnson.

gonn1000 disse...

Já mal me lembro da série, mas fezlimente o filme não se limita a aproveitar a nostalgia e redefine todo o conceito.