Nas últimas décadas, Spike Lee tem-se afirmado como um dos grandes retratistas dos EUA contemporâneos, tendo criado densos olhares de comunidades locais cuja complexidade da abordagem desperta um apelo universal. "Não Dês Bronca" (Do the Right Thing), uma das suas muitas obras centradas em conflitos raciais, foi um dos que lhe garantiu maior visibilidade e reconhecimento num período inicial da sua carreira, e "A Última Hora" (25th Hour), memorável mergulho na trágica herança do 11 de Setembro, destacou-se como um dos ópus mais recentes.
Embora estes sejam os seus dois títulos mais consensuais e emblemáticos, a sua filmografia contempla outros dignos de igual realce, e destes "Verão Escaldante" (Summer of Sam, 1999) impõe-se como um caso a assinalar, sendo talvez o seu melhor filme.
Embora estes sejam os seus dois títulos mais consensuais e emblemáticos, a sua filmografia contempla outros dignos de igual realce, e destes "Verão Escaldante" (Summer of Sam, 1999) impõe-se como um caso a assinalar, sendo talvez o seu melhor filme.
Partindo de acontecimentos reais - o pânico gerado por um serial killer que atormentou o Bronx em 1977, adensado por uma incómoda vaga de calor -, a película aposta, como habitual na obra do realizador, numa análise dos ambientes de comunidades étnicas, neste caso não tanto da negra mas tendencialmente da italo-americana. Desta, emergem três personagens que serão a ponte entre as muitas arestas de um filme que seduz pela diversidade temática: Vinny, um cabeleireiro machista e implusivo; a sua esposa Dionna, que o apoia apesar das frequentes traições; e Ritchie, amigo de Vinny cujo comportamento distinto dos padrões típicos do bairro começa a comprometer a relação de amizade.
Mas mais do que personagens, "Verão Escaldante" é uma obra que trabalha o espírito de uma cidade e de uma época, e fá-lo de uma forma onde os dados factuais surgem interligados com uma energia cinematográfica que atira o filme para uma absorvente experiência sensorial.
Apesar dos assassinatos do homicida marcarem toda a atmosfera do filme, estão longe de ser o elemento central da acção, funcionando antes como pano de fundo desta e elemento decisivo para que se acenda o rastilho para um clima de tensão, desconfiança e pânico que se vai adensando progressivamente. À medida que tentam descobrir a identidade do serial killer, as personagens vão acentuando as suas diferenças e gerando fossos e crispações emocionais de onde emanam sentimentos recalcados, não raras vezes vincados pela xenofobia e intolerância.
Mas mais do que personagens, "Verão Escaldante" é uma obra que trabalha o espírito de uma cidade e de uma época, e fá-lo de uma forma onde os dados factuais surgem interligados com uma energia cinematográfica que atira o filme para uma absorvente experiência sensorial.
Apesar dos assassinatos do homicida marcarem toda a atmosfera do filme, estão longe de ser o elemento central da acção, funcionando antes como pano de fundo desta e elemento decisivo para que se acenda o rastilho para um clima de tensão, desconfiança e pânico que se vai adensando progressivamente. À medida que tentam descobrir a identidade do serial killer, as personagens vão acentuando as suas diferenças e gerando fossos e crispações emocionais de onde emanam sentimentos recalcados, não raras vezes vincados pela xenofobia e intolerância.
Mais do que as já esperadas questões raciais, há aqui outros elementos igualmente marcantes, caso dos conflitos de tendências musicais (e, consequentemente, comportamentais), já que foi neste período que o disco sound atingiu a fase de maior popularidade, mas também o momento em que a ideologia punk deu os primeiros passos. O Studio 54 e o CBGB, ambos representantes de culturas bem distintas, surgem no filme como influentes palcos de agitação, e Lee consegue desenhar os rituais nocturnos da época com adequadas camadas de verosimilhança, ritmo e intensidade.
Sem dúvida um dos picos de inspiração do cineasta, "Verão Escaldante" tem a rara proeza de condensar uma série de temáticas e de as desenvolver com consistência e criatividade, nunca impondo pontos de vista - o que nem sempre ocorre na sua filmografia - e seduzindo através de uma saudável espontaneidade. Da alteração do papel da mulher à preponderância dos media, passando pelas mutações nas orientações sexuais e relações conjugais, o filme é um fresco urbano detalhado e exigente, que em vez de um tom de ensaio demasiado cerebral é antes caracterizado por uma vibrante carga lúdica.
Para esse efeito em muito contribui a sua singularidade formal, onde Lee apresenta um irrepreensível trabalho de realização de forte teor realista e simultaneamente agregador de alguma linguagem dos videoclips e da publicidade. A montagem imaginativa e dinâmica (sem ser estridente) aliada a uma fotografia com muitas explosões de luz e cor reforça essa singularidade visual, que só ganha quando é complementada por uma oportuna selecção musical (toda à base de canções da época, e muitas vezes utilizada para gerar deliciosas pérolas de ironia).
Para esse efeito em muito contribui a sua singularidade formal, onde Lee apresenta um irrepreensível trabalho de realização de forte teor realista e simultaneamente agregador de alguma linguagem dos videoclips e da publicidade. A montagem imaginativa e dinâmica (sem ser estridente) aliada a uma fotografia com muitas explosões de luz e cor reforça essa singularidade visual, que só ganha quando é complementada por uma oportuna selecção musical (toda à base de canções da época, e muitas vezes utilizada para gerar deliciosas pérolas de ironia).
Lee arranca ainda fortes interpretações de um elenco valioso, com destaque para o trio protagonista. John Leguizamo convence na pele do incorrigível Vinnie, Mira Sorvino demonstra que, para além de encantadora, é uma brilhante actriz (ainda que muitas vezes subestimada), e Adrien Brody tem aqui um dos seus melhores desempenhos - o que não é dizer pouco - como Ritchie, aliando vulnerabilidade e determinação na mais interessante e complexa personagem do filme.
Arrebatador a todos os níveis, "Verão Escaldante" é um objecto cinematográfico rico e fascinante, daqueles em que cada visionamento permite descortinar novas camadas e gera surpresa pela obsessiva minúcia com que Lee o construiu. Hipnótico e magnético, transpira vida e intensidade a cada frame ao longo de mais de duas horas frenéticas e merece, por isso, ser recordado e revisto enquanto uma das mais admiráveis obras-primas dos últimos anos.
Arrebatador a todos os níveis, "Verão Escaldante" é um objecto cinematográfico rico e fascinante, daqueles em que cada visionamento permite descortinar novas camadas e gera surpresa pela obsessiva minúcia com que Lee o construiu. Hipnótico e magnético, transpira vida e intensidade a cada frame ao longo de mais de duas horas frenéticas e merece, por isso, ser recordado e revisto enquanto uma das mais admiráveis obras-primas dos últimos anos.
E O VEREDICTO É: 5/5 - EXCELENTE
21 comentários:
Tu deste um...um... 5 !? :P
Preciso de rever este Summer of Sam, mas, independentemente disso, o meu filme preferido do Spike Lee continua a ser o 25th Hour.
Abraço Gonçalo ;)
Gostava de ver o Summer..nunca vi infelizmente :S
Já agora, parabéns pelo blog ;)
Carlos Pereira: Sim, dei, alguma vez tinha de ser :)
Também gosto muito de "25th Hour", mas não acho que supere este. Fica bem.
NewImpossiblePrince: Acho que vale bem a pena, és capaz de gostar.
Obrigado :)
Isto é um dia histórico na vida blogosférica! Pela primeira vez em mais de 2 anos, um 5/5 :P
Apesar de admirar Spike Lee, e já ter visto muita tralha dele, este Summer of Sam continua a escapar. Agora tornou-se obrigatório :D
Um abraço Gonçalo!
Eheh, pena já ter uns anitos e não poder constar da tabela mensal. Fica bem ;)
Para mim, A Última Hora continua a ser o melhor. Sou um grande fã do Spike Lee e por isso gostaria apenas de fazer referência a mais 2 filmes: She's Gotta Have It (o 1º da carreira - acho) e Infiltrado.
Um dos poucos filmes “brancos” de Spike Lee ( a par de A Última Hora (2003) e de O Infiltrado (2006) ), que segue um grupo de personagens ítalo-americanas no dia mais quente de Nova Iorque (tal como em Do The Right Thing), e onde a paranóia sobe tão alto quanto a temperatura, graça a um assassino psicopata à solta. Lee interessa-se mais pelos personagens e as suas relações/tensões, que propriamente no assassino à solta. Excelente ritmo, banda sonora e realização que se conjugam, em mais uma explosão, num final surpreendente. A par de Fight Club foi para mim, o filme do ano de 99
Abraço
Alto lá... parem tudo! Estão a ver aquilo? Sim... os porcos estão a voar! O inferno congelou! O Aronofsky e o Park Chan-Wook fizeram um mau filme!!
SIM! O GONÇALO DEU CINCO ESTRELAS A UM FILME!! Este é ,de facto, um momento histórico.
E o que me irrita mais é que deste um cinco a um filme que eu ainda nem sequer vi (dos poucos do Spike Lee que me escaparam...). Enfim, lá terei de alugar o filme para ver se merece de facto esta nota.
Mas lá que este é um momento histórico, lá isso é... só esperava ver um cinco teu quando... sei lá... quando fizesses uma crítica ao "Citizen Kane", muito provavelmente.
Zarolho: Não vi "She's Gotta Have It", de "Inflitrado" gostei mas não acho que seja um grande filme.
Luís Alves: Também acho que ete e "Fight Club" foram os dois melhores desse ano. Cumps.
Gonçalo Trindade: LOL Calma, mas confesso que me faz alguma confusão ver que há quem encontre obras-primas quase todas as semanas, o que até pode acabar por jogar contra os próprios filmes, ou pelo menos por não os valorizar tanto.
Quanto ao "Verão Escaldante", aconselho a que o vejas, então, e se discordares estás à vontade para vires aqui reclamar ;)
Xii, um 5, e eu ainda nem vi o filme. Já estou a 'puxá-lo'. Tenho que ver isto!
Abraço
Está entre os meus favoritos do Spike Lee! Nessa lista, estão também '25th Hour' e 'Do the Right Thing' :)
emot: Não o puxes que o DVD encontra-se baratinho em muitos sítios (no King, por exemplo).
Wasted Blues: Confesso que "Do the Right Thing" não faz parte dos meus favoritos, acho que é um bom filme mas não me arrebatou.
Realmente é 'histórico' dares nota máxima a um filme :P mas por acaso este Lee anda-me a escapar... a ver se colmato a falha em breve!
Bem, pelo menos serviu para despertar a curiosidade em relação ao filme, já não é mau :)
Epah, uma pessoa passa uns dias sem visitar um blog e quando regressa parece que o mundo vai cair. Ou pior, o xôr Gonçalo atribui a um filme a máxima classificação :-P Ao menos é fá-lo a um excelente filme, não podia estar mais de acordo. É bom ver algum bom gosto, para variar, eheheh ;-)
Bem, se é atribuído ao menos que seja a um filme que o justifique. Antes a este do que a "O Grande Lebowski", por exemplo :P
Vale a pena nem que seja para ver os penteados do Adrian Brody :P
Os dele e os do pessoal do Studio 54 e do CBGBs :)
spike lee no seu melhor!
sem duvida um grande filme, que nao conhecia e que descobri atraves deste teu post! :)
Ainda bem que pude ser útil, então, e logo com este filme :)
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