Uma das grandes surpresas cinematográficas de 2003, “Cidade de Deus” assinalou uma a soberba e memorável estreia na realização do brasileiro Fernando Meirelles, que se tornou automaticamente num nome incontornável entre os novos cineastas mundiais.
Dinâmico, cru, emotivo e efervescente, o filme aguçou a curiosidade em relação a projectos seguintes do realizador, por isso a sua segunda obra, “O Fiel Jardineiro” (The Constant Gardener), torna-se assim numa película especialmente decisiva na determinação do estatuto e respeitabilidade do seu autor.
Felizmente, e mesmo não sendo tão vibrante como o seu antecessor, o novo trabalho de Meirelles confirma-o como um autor interessante e com algo de relevante a dizer, sabendo dosear estilo e substância e aliando o entretenimento à reflexão (que nunca é sugerida de forma forçada).
“O Fiel Jardineiro” não é propriamente a película que se esperaria de Fernando Meirelles, uma vez que se trata de uma co-produção britânica e alemã, conta com actores mediáticos (Ralph Fiennes e Rachel Weisz) e baseia-se num romance de John Le Carré, oferecendo uma intrigante mistura de drama intimista, thriller político e road movie.
Não está, à partida, muito próximo de “Cidade de Deus” - foi feito com meios mais limitados, recorrendo a um elenco maioritariamente amador -, mas por detrás da capa de “filme de prestígio” (já há quem o considere um dos incontornáveis na próxima edição dos Óscares) a espontaneidade e ousadia temática e formal da primeira obra do realizador brasileiro acabam ainda por se repetir.
Um olhar sobre o continente africano e o seu papel num cenário mundial actual cada vez mais marcado pela globalização, “O Fiel Jardineiro” centra-se no relacionamento entre Justin, um diplomata sério e recatado (e jardineiro nas horas vagas), e a sua esposa Tessa, uma jornalista cujo forte idealismo e activismo lhe geram alguns problemas, conduzindo ao seu abrupto assassínio.
Mesclando linhas temporais distintas, o filme foca, por um lado, o início e dia-a-dia da relação do par protagonista e, por outro, a tentativa de resolução do mistério da morte de Tessa por parte de Justin.
Pelo meio, há ainda uma perspectiva quase documental sobre as contrariedades da subsistência em países do terceiro mundo, em particular sobre o Nairobi, local onde decorre grande parte da acção (contrastando com os ambientes urbanos de Londres, a outra cidade-chave do filme), assim como uma crítica a aspectos algo dúbios dos métodos da indústria farmacêutica.
Ora mergulhando no abismo emocional de Justin, que redescobre Tessa após a morte desta, ora gerando um retrato do tecido social do Quénia, a película surpreende ao proporcionar momentos de uma inesperada introspecção, como aqueles que envolvem a bela história de amor que aqui de (des)constrói.
Ralph Fiennes e Rachel Weisz compõem duas personagens envolventes e complexas, tornando-se num par romântico algo atípico, dada a divergência de pontos de vista, mas que possuem, afinal, mais elementos em comum – como Justin descobre - do que se julgaria inicialmente.
Fiennes, contido e meticuloso, prova porque é que é um dos grandes actores de hoje, e Weisz encanta e comove ao afastar-se de alguns papéis anteriores que não faziam jus ao seu (agora) notório talento interpretativo.
Apostando aqui num ritmo mais apaziguado do que em “Cidade de Deus”, Meirelles não deixa, no entanto, de esculpir cenas com bastante energia, pois a carga dramática do filme é absorvente e a realização continua inventiva, recorrendo a enquadramentos bem conseguidos e a uma montagem fluida.
Os tons crus e realistas mantêm-se, e certas sequências filmadas nos bairros de Nairobi aproximam-se da aspereza, texturas e explosão de cores das atmosferas das favelas brasileiras, excepcionalmente trabalhadas na primeira obra do cineasta e confirmando-o como um criativo esteta.
Mesmo não sendo uma obra-prima, “O Fiel Jardineiro” é um título maduro e relevante, que consegue apresentar uma postura humanista e crítica sem enveredar pelo choradinho fácil e oportunista nem reduzir as suas personagens a meros joguetes sem substância que apenas servem uma causa.
Noutras mãos, este material poderia ter originado um filme óbvio e panfletário, mas Fernando Meirelles soube abordá-lo com subtileza e engenho. Não chega a ser um murro no estômago tão devastador como “Cidade de Deus”, mas ainda tem atributos muito recomendáveis.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM
14 comentários:
e' um vale a pena ver!
excelente critica.
Obrigado. Sim, acho que vais gostar, tendo em conta o que conheço do teu blog :)
Apesar de uma falha ou outra (e por essa razão é inferior ao Cidade De Deus), é um filme que se vê bastante bem e dá que pensar :).
Abraços
Pois, não é perfeito mas está bem acima da média. Bons filmes :)
é bom bom filme realmente, com um dos meus actores favoritos.
Viva,
Estamos genericamente de acordo. Foi só pena algum esquematismo do argumento que culminou naquela cena na igreja que retirou parte do capital de realismo conquistado ao longo do filme.
Mesmo assim é um filme deveras agradável em que Meirelles prova que é um realizador a ter em conta!
Abraço,
Eur3ka: Sim, o Fiennes é um excelente actor, e aqui volta a demonstrá-lo.
Ricardo: Sim, a segunda parte é mais esquemática e formatada, mas ainda interessante.
Jamais me encantei/surpreendi com a abordagem dada por Meirelles à adaptação do livro CIDADE DE DEUS, mas este novo filme deve valer pelo elenco. Não me adentro mais no texto para evitar maiores revelações.
Cumps.
Vale pelo elenco, mas também pelo argumento, realização, montagem, banda-sonora e fotografia. Nada mau...
Concordo, é dos melhores que vi no cinema ultimamente, embora fique um pouco abaixo de - esse sim muito bom - "Elisabethtown", do Cameron Crowe.
Adorei o filme, mas também prefiro "Cidade de Deus". O estilo Guerrilha de Meirelles injecta uma energia orgânica poderosíssima no romance de Le Carré. Fabuloso!
Já li a tua crítica e vi que gostaste um pouco mais do que eu. E o estilo de Meirelles é de facto cativante e inconfundível.
O Fiel Jardineiro é daqueles filmes que vi e fiquei sem saber se gostei ou não.
Por um lado, temos a fotografia deslumbrante, a música do Alberto iglesias e bons actores.
Por outro lado, temos um argumento esquisito em que não acontece rigorosamente nada. Há um crime que já toda a gente sabe que foi responsabilidade da empresa farmacêutica - aliás, um vilão demasiado abstracto para ser interessante - e um protagonista que se limita a correr de um lado para o outro como uma barata tonta. Se calhar a graça está toda aí: ter um argumento sem história e mesmo assim fazer um filme interessante.
Em todo o caso, o realizador conseguiu injectar alguns momentos de suspense, como na sequência alemã.
Também concordo com o Gonçalo - o filme é abertamente político, mas não caiu no panfletismo fácil.
Então um fã assumido do João César Monteiro vem dizer que neste filme não acontece nada? :P
Discordo, acho que há uma boa história de amor, com densidade e maturidade, e uma intriga conspiratória interessante, ainda que a resolução do "mistério" seja algo óbvia. E depois há a impressionante transformação da personagem de Fiennes, talvez o melhor elemento do filme.
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