"Tesis", "Abre los Ojos" e "Os Outros" (The Others) já tinham sugerido que Alejandro Amenábar era um cineasta curioso e com uma forma peculiar de contar histórias, sobretudo em domínios do thriller com alguns elementos fantásticos. Apesar da sua curta filmografia se destacar como promissora, também era demasiado sobrevalorizada por quem viu na eficácia dos seus filmes traços de genialidade e inspiração superiores. É por isso que "Mar Adentro", o seu trabalho mais recente, é tão decisivo na sua obra, uma vez que efectua uma mudança de registo - trata-se de um seco e depurado drama familiar - e finalmente confirma Amenábar como um realizador a seguir com atenção.
O filme foca os esforços de Ramón Sampedro, tetraplégico há trinta anos, para colocar "termo à vida dignamente", ou seja, recorrendo à eutanásia, acabando assim com um quotidiano marcado por um desencanto recorrente e frustrante. A premissa de "Mar Adentro" baseia-se num caso verídico, e Amenábar apoiou-se no livro «Cartas desde el Infierno», escrito pelo próprio Sampedro, onde este narra todo o processo relacionado com a sua luta pelo direito à morte, desde o fatídico acidente no mar, que o vitimou aos 25 anos, até à polémica que o seu caso gerou nos media.
Um dos grandes trunfos de "Mar Adentro" é, indubitavelmente, o seu actor principal, Javier Bardem, uma presença carismática e convincente, capaz de tornar Ramón numa figura complexa e evitando os lugares comuns que geralmente marcam personagens deficientes no cinema. Ao contrário do que ocorre em muitos dramas (sobretudo nos de Hollywood), aqui não há uma abordagem que trate o tetraplégico como um "coitadinho" unidimensional e caricatural que envereda por uma constante auto-comiseração. Pelo contrário, Bardem encarna um Ramón subtil, inteligente e perspicaz, que tanto exprime uma arrepiante revolta como um irresistível sentido de humor, nunca recorrendo a tiques ou jogadas fáceis. As suas interpretações em títulos como "Em Carne Viva", "Antes que Anoiteça" ou "Às Segundas ao Sol" já eram impressionantes, e aqui o actor mantém o nível excelente que o tem distinguido, o que torna ainda mais incompreensível o facto de não ter sido nomeado para o Óscar de Melhor Actor, uma vez que estaria muito acima da concorrência.
Contudo, a direcção de actores de "Mar Adentro" distingue-se não só pela escolha do protagonista perfeito mas também por um notável acerto em todo o elenco, com secundários de excepção que conseguem transmitir a densidade emocional que um drama tão exigente como este requer. Os familiares e amigos de Ramón vivem numa tensão e preocupação constantes, expondo múltiplas opiniões acerca da controversa questão da eutanásia, e os actores conseguem inserir-lhes a tridimensionalidade necessária para que estas personagens não se reduzam a porta-estandarte de uma determinada perspectiva sobre esta temática. Pelo contrário, todos evidenciam que as suas decisões e tomadas de posição são motivadas pelo amor que sentem por Ramón, o que torna as suas decisões especialmente dolorosas.
Amenábar proporciona aqui o seu filme mais coeso e surpreendente, recorrendo a um argumento bem elaborado, a um ritmo pausado mas pleno de intensidade, a um brilhante trabalho de fotografia e a uma adequada banda-sonora. A realização oscila entre credíveis tons realistas, por vezes quase documentais, e pontuais momentos com atmosferas oníricas e etéreas (estas nem sempre interessantes, como a cena algo estereotipada do poético pôr-do-sol à beira mar). Pelo meio, há espaço para as deslumbrantes paisagens da Galiza e para um curioso olhar sobre a comunidade rural dessa zona, evitando traços de um pitoresco exagerado.
É certo que a perspectiva de Amenábar sobre a eutanásia é tendenciosa, elemento que se evidencia, por exemplo, no episódio da discussão entre Ramón e o bispo tetraplégico, que retrata a Igreja de forma um pouco simplista e plana. Os agonizantes momentos finais do filme, onde se revela o destino da advogada Julia (soberbamente interpretada por Belén Rueda), também deixam bem clara a postura do cineasta, embora "Mar Adentro" não seja prejudicado por essa opção, uma vez que a temática central é, ainda assim, abordada com considerável subtileza durante grande parte do filme.
Premiado com o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e distinguido com muitos outros galardões cinematográficos (pelo National Board of Review, Globos de Ouro, Festival de Veneza ou Prémios de Cinema Europeu), "Mar Adentro" justifica plenamente os diversos elogios que tem obtido, salientando-se como um sensível e comovente drama que recusa o facilitismo que mina muitos melodramas manipuladores. A par do igualmente belo e profundo "Maria Cheia de Graça", de Joshua Marston, este soberbo filme de Alejandro Amenábar é a melhor experiência cinematográfica do primeiro trimestre de 2005. Obrigatório e arrebatador.
E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM
4 comentários:
bom estilo e substância. este é um grande blog [prova que o serviço público em destaque nas paredes oblíquas foi justo e merecido]. bom trabalho.
obrigado pelas óptimas referências.
cumprimentos.
Ena, obrigado :) E obrigado pelo destaque no teu site, também...Volta sempre.
Estou para ver este filme a algum tmp, a temática não me está a cativar mt, no entanto um realizador que já filmes como "Abre los Ojos" e "The Others" merece toda a atenção.
Pois merece, e acho que este até é o melhor filme dele...
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