quinta-feira, janeiro 27, 2005

SIM, OUTRO FILME DE ADOLESCENTES...

Co-argumentista de "Cães Danados" (Reservoir Dogs) e "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, e realizador de "Killing Zoe", Roger Avary adapta, em "As Regras da Atracção" (The Rules of Attraction), a obra literária homónima de Bret Easton Ellis para o grande ecrã.
Através de "Psicopata Americano", "Menos que Zero", "Os Confidentes" ou "Glamorama", Ellis retratou, com uma ácida e cortante perspectiva, as experiências dos adultos jovens norte-americanos – especialmente a facção yuppie - durante os anos 80 e a alvorada dos anos 90, com um estilo singular que despertou as mais diversas reacções.
Um filme como "As Regras da Atracção" mantém essa natureza corrosiva e dura indissociável da obra de Ellis, apresentando simultaneamente traços aparentados dos títulos cinematográficos em que Roger Avary trabalhou (humor negro, niilismo, ambientes sombrios, entre outros).

Focando as peripécias de três jovens universitários, a película gera um olhar negro e inquietante sobre domínios da angústia adolescente e do período de instabilidade emocional que vinca a chegada à idade adulta.
Tendo em conta que o argumento é baseado num livro de Easton Ellis, "As Regras da Atracção" raramente apresenta momentos de candura e optimismo, optando antes por despoletar uma complexa teia que combina a tragédia e a comédia de forma desconcertante (a cena do suicídio, em particular, elabora essa estranha mistura de coordenadas).

Contrariamente à maioria dos filmes de adolescentes habituais, marcados por uma linearidade e esquematismo que em nada inovam, aqui a narrativa encontra-se repleta de camadas e texturas, registando-se uma efervescente interligação entre a intrincada montagem, os truques da câmara (split screens, rewinds e demais estratégias de sedução visual) e a adequada banda-sonora (onde constam The Cure, Erasure ou Love&Rockets, entre outros nomes agarrados às fronteiras indie/mainstream). Esta lúdica vertente formal contribui muito para o surgimento de uma aura específica que afasta "As Regras da Atracção" do teen movie mais banal, mas para além do (apelativo) estilo, o filme contém ainda suficientes doses substância.

A curiosa mescla de som e imagem - como a excelente trip pela Europa - é complementada pela refrescante narrativa que se divide pelas perspectivas de vários narradores, o que cria um interessante - ainda que por vezes confuso - ritmo para o filme (o dinamismo narrativo lembra, por exemplo, os saudosos "Pulp Fiction" ou "Trainspotting").

Devido à sua dimensão de filme-puzzle, "As Regras da Atracção" possui um argumento pouco convencional, centrado, essencialmente, nos pontos-de-vista de três personagens: Sean (interpretado por um soturno e convincente James Van Deer Beek), egoísta e arrogante, um daqueles protagonistas susceptíveis de desencadear as mais fortes aversões devido à aparente escassez de valores que o redimam; Lauren (a sempre eficaz Shannyn Sossamon), uma relutante jovem que tenta resistir à solidão enquanto espera pelo regresso do namorado; e Paul (Ian Somerhalder, provavelmente a melhor interpretação do filme), bissexual e incapaz de criar laços sólidos com os que o rodeiam.

As interacções do trio protagonista originam um conturbado triângulo amoroso quando Paul (ex-namorado de Lauren) tenta aproximar-se de Sean, embora este o repudie ao investir numa tentativa de sedução de Lauren.
Estas relações entrecruzadas estão na origem de cenários de frustração e desilusão, que Avary condimenta com consideráveis doses de comédia negra a par de algumas cenas irreverentes e algo gratuitas.

Pela narrativa circular passa uma reflexão sobre o vazio e vulnerabilidade emocional, e por detrás do "fogo de artifício" encontram-se atmosferas de solidão e amargura, que se revelam à medida que as personagens se afastam progressivamente de uma certa unidimensionalidade inicial. O último terço do filme é particularmente intrigante, pois após a descarga de cinismo, hedonismo e aspereza, Avary proporciona envolventes e inesperados territórios góticos e poéticos, cujo ponto alto é o diálogo final entre Paul e Lauren e o abrupto - e muito apropriado - desenlace.

Esta amálgama de episódios a espaços inconsequentes com uma subtil vibração dramática confunde e pode tornar-se desconfortável - a canção "So Alive", dos Love&Rockets, nunca foi tão sinistra como na poderosa cena entre Sean e Paul - mas torna "As Regras da Atracção" num muito estimulante retrato da crise de valores e princípios, da depressão e da desumanização que se insinua nas sociedades contemporâneas.
Não se procura, aqui, fornecer uma visão demasiado realista da experiência universitária (até porque seria redutor caracterizá-la somente com um enfoque baseado no negrume e desolação), antes um olhar satírico e cáustico sobre a natureza dúbia e a carga mais negra do decisivo processo de crescimento.
"As Regras da Atracção" oferece, assim, uma viagem emocional alucinatória e hipnótica tão ímpar e memorável como os igualmente recomendáveis "Donnie Darko", de Richard Kelly, ou "Ghost World - Mundo Fantasma", de Terry Zwigoff, outros entusiasmantes títulos indie acerca das tensões da juventude actual.

E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM

6 comentários:

O Puto disse...

Estou para ver este filme há já algum tempo.
E reconheço um enorme talento descritivo e analítico ao ler os teus apontamentos de cinema (isto não é graxa, não senhor). Tens que pensar sinceramente em levar isso mais a sério e escrever para uma publicação. Não devo ser só eu a dizer isto, pois não?
Abraço,
O Puto

gonn1000 disse...

Sim, acho que o filme vale a pena, embora não seja uma obra muito consensual...

Obrigado pelo elogio...Eu não me importava de o fazer profissionalmente, as oportunidades é que são escassas. De qualquer forma, é sempre bom ver o trabalho reconhecido, sobretudo por quem tem credibilidade na área (como o teu blog pode atestar...).

Fica bem;)

Gil Cunha disse...

Aqui está uma crítica com a qual concordo plenamente... Regras da atracção será um filme de referência... :)

gonn1000 disse...

Também o considero uma obra de referência, só é pena ter passado um pouco a leste das atenções. Nada que não se resolva, contudo...

thay!! disse...

Esse filme,pela sua descrição parece ser bem parecido com um livro "O terceiro travesseiro" você ja ouviu fala?
são parecidos né?

gonn1000 disse...

Com esse título não conheço nenhum, qual é o original?