Nos últimos anos, o cinema documental tem sido alvo de uma notória vitalidade e destaque, tornando-se num género cada vez mais aceite pelo grande público.
"Fahrenheit 9/11", de Michael Moore, ou "Super Size Me - 30 Dias de Fast-Food", de Morgan Spurlock, foram dois dos títulos mais mediáticos de 2004, mas há outros exemplos dignos de atenção oriundos de círculos mais alternativos e marginais. "Tarnation", de Jonathan Caouette, é um deles, e proporciona uma imprevisível e absorvente viagem pelas memórias do realizador, levando ao limite o princípio do do-it-yourself.
Caouette debruça-se sobre alguns dos mais marcantes acontecimentos da sua vida recorrendo a imagens do seu arquivo pessoal, recolhidas desde os seus 11 anos através de câmaras Betamax, VHS, Hi-8 ou Mini-DV.
Expondo gravações privadas que focam situações do seu quotidiano familiar, o realizador evidencia sobretudo a tensa e dolorosa relação com a sua mãe Renee Leblanc, doente bipolar, responsável por alguns dos momentos mais perturbantes da sua vida.
Paralelamente às filmagens, geradas ao longo de 19 anos, "Tarnation" inclui ainda álbuns de fotografias, gravações de atendedores de chamadas, cenas de programas de TV e filmes, diários registados em cassetes e canções emblemáticas do percurso do autor, resultando numa complexa e criativa colagem de fragmentos díspares.
Mais do que um intrigante exercício de cut n' paste, "Tarnation" é um denso e inquietante olhar sobre as relações familiares, o crescimento, a identidade e a disfuncionalidade, originando um retrato onde a fronteira entre o genuíno e o encenado é ténue e dúbia.
Por vezes narcisista e auto-indulgente, noutros momentos sensível e comovente, o filme - ou antes, esta inclassificável experiência audiovisual - tanto aposta numa crua vertente realista como em atmosferas de inebriante onirismo, gerando uma insólita perspectiva acerca de uma vida vincada pela melancolia.
Expondo a sua infância conturbada e a não menos difícil adolescência - onde se manifestou o contacto com as drogas, a dilaceração familiar ou a afirmação sexual -, Caoette apresenta uma obra dolorosamente pessoal marcada pela vulnerabilidade afectiva. Para além da relação com a sua mãe (e com a desconcertante doença mental desta), o realizador foca também a sua paixão pelo cinema e música underground - a determinante banda-sonora contém nomes como Magnetic Fields, Low, Nick Drake ou Cocteau Twins -, pelos musicais ou pela cultura gay (com a qual lidou desde muito cedo).
Embora não evite alguns passos em falso, enveredando por um voyeurismo eticamente questionável - até que ponto Caouette terá legitimidade para divulgar certos episódios pessoais dos seus avós e mãe? - e oferecendo ocasionais cenas redundantes e dispensáveis, o turbilhão emocional que "Tarnation" contém é tão pujante que se sobrepõe às suas evidentes fragilidades.
Atípica, memorável e inovadora, a primeira obra de Jonathan Caouette é um dos mais surpreendentes filmes do início de 2005, uma pequena pérola indie que pode gerar ódios e paixões, mas dificilmente deixará algum espectador indiferente. No meio de tantos filmes inócuos e indistintos, essa é já uma característica meritória - mas não a única - deste peculiar e recomendável home movie.
E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM
4 comentários:
concordo com as tuas considerações. muito assertivas.
Obrigado :) Parabéns pelo teu blog, que só descobri hoje mas ainda vou a tempo...
acabei de ver o filme. adorei.
até ao meio, poderia ter sido um filme muito bom. mas até meio já o foi.
a banda sonora está muito boa. agora é tudo muito estranho, não se sabe onde é que acaba o quê e começa quem.
Sim, é pouco convencional mas acaba por agarrar e a banda-sonora ajuda.
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