sábado, abril 30, 2005

UNS DIAS DE RAIVA

Sobre este "Dias de Santiago", a primeira longa-metragem do peruano Josué Méndez, algumas vozes evocavam traços do incontornável "Taxi Driver", de Martin Scorcese, pelo tipo de atmosferas e pelo protagonista numa situação-limite, incapaz de lidar com um mundo em combustão.

De facto, à semelhança do que ocorre com "O Assassínio de Richard Nixon", de Niels Mueller, os fantasmas dessa influente obra passam por aqui, neste retrato desencantado das experiências de um ex-soldado que regressa a casa após anos de combate e se depara com uma realidade pouco auspiciosa.

Santiago Roman observa e analisa os seus amigos, familiares e outros habitantes de Lima, mas não encontra nada de motivador ou esperançoso nestas figuras, recolhendo-se então numa esfera de melancolia, amargura e um carregado nervosismo à beira da explosão, sentimentos que se intensificam num quotidiano vincado pela falta de perspectivas. Um outcast incompreendido pelos que o rodeiam, o protagonista opta, aos poucos, por adoptar uma atitude mais proactiva, de forma a responder a uma sociedade decadente e infrutífera.

Josué Mendez aborda a inquietação da sua personagem principal de forma eficaz, apostando numa realização de tons crus e realistas, contando com uma fotografia de tonalidades apropriadamente rudes e ásperas. Contudo, o recurso a algumas imagens a preto-e-branco em diversos momentos torna-se cansativo, e o ritmo do filme é demasiado irregular, assim como o argumento, que não dispensa uma série de cenas redundantes.

Pietro Sibille foi uma escolha adequada para protagonizar o filme, expondo as doses necessárias de revolta, inocência e genuinidade, embora os restantes elementos do elenco não possuam interpretações especialmente memoráveis, raramente ultrapassando a mera competência.

"Dias de Santiago"
é uma estreia interessante, mas que fica aquém das suas potencialidades, dado que a sua abordagem não fornece nada de novo nem de muito imaginativo. Um filme curioso, ainda assim, mas prejudicado por momentos bastante frágeis, como o desenlace que segue os moldes de um histérico e pouco convincente drama “de faca e alguidar”.

E O VEREDICTO É: 2/5 - RAZOÁVEL

A RECTA FINAL

Já com mais de uma semana e com mais de dez mil espectadores, a segunda edição do IndieLisboa aproxima-se agora do seu final. O nono dia do festival não apresentou filmes inéditos mas constituiu uma oportunidade para (re)ver algumas das obras em exibição.

Em destaque estiveram «Le Conseguenze dell’ Amore», de Paolo Sorrentino; «The Forest for the Trees», de Maren Ade; «Le Pont des Arts», de Eugène Green; ou «Dias de Santiago», de Josué Mendez; entre outros (ver críticas). O soberbo Director’s Cut de «The Big Red One», de Samuel Fuller, um dos maiores destaques desta segunda edição, foi também reexibido, assim como o inclassificável «Tropical Malady», de Apichatpong Weerasethakul, uma das maiores bizarrias que por lá passou.

Entretanto, estão quase a ser revelados os filmes mais votados pelo público e pelo júri, e aguarda-se com expectativa «My Summer of Love», de Pawel Pawlikowski, a película da sessão de encerramento que será exibida hoje à noite e que já se encontra esgotada há vários dias (e para a qual não consegui bilhete...).

sexta-feira, abril 29, 2005

INADAPTADA

Inquietante, esta primeira longa-metragem da alemã Maren Ade. “The Forest for the Trees” segue, inicialmente, um registo de comédia dramática acerca das peripécias de Melanie, uma jovem professora que tenta reconstruir a sua vida após o divórcio. Proveniente de uma localidade rural, a protagonista consegue emprego numa escola de uma cidade e tenta adaptar-se às vicissitudes do espaço urbano, procurando encetar novas amizades.

Contudo, por mais que tente, Melanie não consegue sair de uma esfera de solidão e isolamento, raramente estabelecendo laços com os que a rodeiam. Se a sua vida pessoal é pouco próspera, as suas experiências profissionais são ainda mais frustrantes, uma vez que a professora não conquista o respeito dos alunos e é alvo de troça recorrente.

“The Forest for the Trees”
começa por divertir o espectador, uma vez que as situações embaraçosas geradas por Melanie são cómicas mas bastante verosímeis, comprovando que há por aqui uma realizadora perspicaz e atenta aos detalhes do quotidiano. No entanto, à medida que a protagonista vai entrando numa espiral descendente, essas situações vincadas pelo humor tornam-se cada vez mais difíceis de observar, expondo grandes doses de desencanto e melancolia.

A jovem professora, que no início do filme irradia um optimismo e idealismo surpreendentes, terá de lidar com as consequências da sua ingenuidade e não será poupada a uma série de cruéis episódios à medida que é ignorada, desprezada e ridicularizada pelos outros. Maren Ade aplica à sua personagem múltiplos requintes de malvadez, gerando momentos tragicómicos e tornando o filme numa experiência desconcertante.

Melanie é uma figura incómoda e vítima da sua própria fragilidade, um elemento instigador de situações constragedoras, o que faz com que seja incapaz de criar novas relações, ainda que as suas atitudes sejam sempre (e é isto que inquieta e comove) bem-intencionadas.
A realização crua e despojada de Ade intensifica a carga de realismo que uma obra desta vertente exige, e a soberba interpretação de Eva Löbau faz de Melanie uma das protagonistas mais marcantes de 2005, concentrando amargura e desilusão.

Poderoso retrato das relações humanas, “The Forest for the Trees” começa com um humor ligeiro para enveredar depois por um frio e clínico estudo de personagem, num crescendo emocional asfixiante que se mantém até ao tenso e brutal desenlace.

Se Melanie passa o filme num estado de angústia e desespero que tende a aprofundar-se, o mesmo acontece com o espectador, o voyeur deste retrato de pequenas mas violentas torturas. Por isso, é difícil relacionarmo-nos com este filme, como seria difícil relacionarmo-nos com Melanie, mas há que reconhecer que Maren Ade é uma realizadora a seguir com atenção.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

QUOTIDIANO POUCO DELIRANTE

"Le Conseguenze dell' Amore" centra-se em Titta di Girolamo, um homem de meia idade com ligações à Máfia que passa os dias num hotel há quase dez anos, vivendo uma rotina pouco auspiciosa marcada pelo progressivo distanciamento em relação aos que o rodeiam.

Individualista, silencioso e solitário, o protagonista começa a evidenciar sinais de mudança à medida que se torna mais próximo de Sofia, uma jovem empregada do hotel com quem acaba por criar uma inesperada empatia. Contudo, até que ponto é que esse envolvimento poderá ser seguro e conveniente?

Este drama existencialista cool com traços de suspense começa de forma suficientemente intrigante, contando com a mais-valia de uma convincente banda-sonora (o melhor do filme) e de uma realização sofisticada, mas Paolo Sorrentino não consegue proporcionar uma execução envolvente e "Le Conseguenze dell' Amore" depressa se torna numa obra banal e monótona.

O ritmo é demasiado lento e as personagens permanecem sempre gélidas e impenetráveis, sobretudo o protagonista, interpretado por um lacónico Toni Servillo. Numa curta ou média metragem, talvez o projecto resultasse, mas o argumento árido e esquelético não se aguenta durante hora e meia, e a película só não se torna enfadonha quando Sorrentino se apoia nas composiçõs musicais para gerar alguma vibração e impacto. Um filme desinspirado e inconsequente.

E O VEREDICTO É: 1/5 - DISPENSÁVEL

UMA SEMANA INDIE

O oitavo dia do IndieLisboa foi marcado por três estreias, e a primeira a ser exibida foi «Parapalos», de Ana Poliak, um filme que, apesar de ser proveniente da Argentina, não se encontra inserido na secção “Herói Independente” do festival (que destacou ontem «Modelo 73», «Cabeza de Palo» e «Balnearios»), sendo antes uma das obras em competição.

Outro título em competição apresentado ontem foi «Ono», da polaca Malgosia Szumowska. Ambos os filmes focam o universo da adolescência, mas de forma diferente: «Parapalos» centra-se num jovem do meio rural que viaja para Buenos Aires e torna-se empregado de um salão de bowling, já «Ono» narra a inquietação de uma adolescente grávida indecisa entre assumir o papel de mãe ou abortar.

A outra estreia do dia – uma ante-estreia, aliás, tendo em conta que o filme está confirmado para o circuito comercial nacional – foi «Somersault», da australiana Cate Shortland (na foto acima), uma película que tem sido alvo de múltiplos elogios em festivais internacionais. Abordando as peripécias de uma jovem que tenta enfrentar as suas emoções e os laços com os que a rodeiam, Shortland gera uma notável primeira obra e um dos mais belos filmes deste IndieLisboa. Lamenta-se, por isso, que a afluência do público tenha sido apenas moderada, pois este é um título que merece toda a atenção (crítica mais detalhada em breve).

Bem menos entusiasmante, mas bastante concorrido, «Sund@y Seoul», do coreano Oh Myung-hoon, destacou-se como uma das obras em competição mais aguardadas do dia, dado que o filme não foi exibido na íntegra durante a sua primeira exibição, no passado domingo, pois a cópia do mesmo encontrava-se incompleta.

Baseado em artigos da imprensa sensacionalista, «Sund@y Seoul» apresenta os encontros e desencontros de uma série de personagens onde a tecnologia – os telemóveis e a Internet, sobretudo – desempenha um papel fulcral nas formas de comunicação, e é determinante para que as três histórias que compõe o filme se entrecruzem. Contudo, não é com personagens desinteressantes nem com uma narrativa demasiado dispersa que Oh Myung-hoon consegue tornar esta premissa em algo consistente, e esta sua primeira longa-metragem, apesar de conter algumas cenas intrigantes, arrasta-se sem brilho e não tem nada para dizer. Ser indie não basta, é preciso ter ideias...e boas, de preferência...

quinta-feira, abril 28, 2005

QUEREM (MAIS) UM?

Ele tinha prometido voltar, em Novembro de 2004, perante uma Aula Magna carregada de vibração e entusiasmo. Mais: comprometeu-se a regressar com a banda, embora o seu concerto a solo tenha comprovado que o músico sabe ser eficaz por si só. E assim foi…

Poucas semanas após ter actuado na primeira parte do concerto dos Keane, Rufus Wainwright voltou a palcos nacionais para um concerto no Coliseu de Lisboa no passado dia 24. E desta vez com a sua banda, conforme tinha prometido.

Um nome em ascensão entre nós, o cantor/compositor/multi-instrumentista tem prosseguido um sólido rumo e conta já com quatro álbuns de originais, conquistando, aos poucos, um público cada vez mais alargado. Prova disso é o acolhimento de que goza em território luso, onde a quantidade de fãs dedicados e já considerável (e até surpreendente, tendo em conta o reduzido mercado). No entanto, a sala do Coliseu não se encontrou muito preenchida, o que se deve, provavelmente, às visitas regulares que o músico canadiano efectuou a palcos nacionais nos últimos meses (espera-se que este não seja mais um artista vítima de uma exposição excessiva, que poderá jogar contra si, como ocorreu com os Tindersticks ou os Lamb há uns anos).

A noite de domingo demonstrou, contudo, que apesar de Wainwright se ir tornando já numa cara mais conhecida, mantém ainda um evidente profissionalismo e entrega. “Want Two”, o mais recente disco do músico, foi o principal destaque do espectáculo, o que não impediu pontuais regressos ao passado para a recuperação de temas emblemáticos.

“Agnus Dei” foi o momento inaugural e gerou logo um ambiente marcado por uma concentração quase religiosa (ou não fosse a pop alvo de culto) por parte dos espectadores. Acompanhado por uma banda com instrumentos que englobavam a guitarra (acústica e eléctrica), bateria, violino e violoncelo, o cantor recorreu ainda à fulcral contribuição do piano e apresentou um lote de sólidas canções. “Vibrate” foi um dos primeiros temas de eleição, congregando a mescla de intimismo e emotividade característica do músico, mas o concerto ofereceu outros episódios de boa memória como “Memphis Skyline” ou o marcante “Hallelujah” (a tal cover de Leonard Cohen), dedicados a Jeff Buckley.

Foto: Cotonete

Algo que tem vindo a evidenciar-se nos concertos de Wainwright é a sua faceta de contador de histórias, que tem sido desenvolvida de forma convincente. Aqui voltou a manifestar-se, tanto nos comentários acerca da religião (“Gay Messiah” foi dedicada a todos os Papas, numa curiosa atitude de provocação que já se previa) ou em revelações acerca da sua família, por vezes divertidas e noutros casos mais emotivas. A química com o público surgiu naturalmente, e para além do talento como músico Wainwright exibiu ainda os seus dotes de entertainer nato, irradiando uma boa-disposição contagiante.

Outros momentos cativantes foram “Across the Universe”, a belíssima cover dos Beatles (incluída na banda-sonora de “I Am Sam”) e o indispensável “Cigarettes and Chocolate Milk”, que não poderia ser esquecido. Todavia, a surpresa da noite chegou com os encores, onde não só o músico mas toda a banda começaram, subitamente, a despir-se, deixando o público expectante e intrigado. Wainwright acabou por ficar apenas com um minúsculo fio dental, sapatos de salto alto de um vermelho berrante e asas de borboleta, sendo imediatamente observado, comentado e aplaudido pelos espectadores (morram de inveja, Scissor Sisters!).

“Aposto que os rapazes dos Keane não fizeram isto”, afirmou o cantor, atirando mais um comentário mordaz e irresistível. A animada “Old Whore’s Diet” ficou assim como o momento mais memorável da noite, mas os três (!!!) encores apresentaram ainda “Oh What a World”, “I Don’t Know What it Is”, “Poses” e o muito trauteável “Califórnia”, que o músico interpretou já de roupão vestido.

Embora tenha sido um concerto agradável e competente, não contou com uma atmosfera tão calorosa e intimista como o espectáculo na Aula Magna, no final do ano passado, e, exceptuando o delirante desenlace, não ocorreu nada de verdadeiramente surpreendente e inesperado. Não afecta, ainda assim, uma performance em boa forma, durante mais de duas horas, e a confirmação de um nome a reter e a seguir com atenção, constando já na selecta lista de artistas de culto.

Antes da actuação de Rufus Wainwright, Joan as a Police Woman (que faz parte da banda de Rufus) foi a escolhida para aquecer a noite, mas não conseguiu animar muito os ânimos dos espectadores através da sua morna selecção de canções. Suficientemente afável e cumpridora, apresentou um conjunto de temas razoáveis mas demasiado indistintos, apostando nos moldes mais convencionais das composições dos singers/songwriters. Curiosamente, o momento alto da sua prestação foi o último tema, (merecidamente) dedicado a Elliott Smith, por sinal um dos nomes mais criativos do género durante a última década. No entanto, artistas como Rufus Wainwright comprovam que a vitalidade continuará presente nesses domínios, e a noite de domingo consta já entre as boas memórias musicais de 2005.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

INDIE: DIA SE7E

«Le Conseguenze Dell’ Amore», do italiano Paolo Sorrentino, destacou-se como uma das estreias do sétimo dia do IndieLisboa, que contou com uma considerável adesão do público. Foi uma obra que dividiu opiniões, e quem não esteve na sessão poderá visionar o filme na reexibição de amanhã, às 15 horas, na sala 1 do King.

«The World» (na foto), do “Herói Independente” Jia Zhangke, foi outra das estreias, numa exibição única. «To Take a Wife», de Roni e Shlomi Elkabetz, e o desapontante «Yesterday Once More», de Johnnie To, foram novamente exibidos, e a programação da sala 3 do King foi dominada pelas curtas-metragens, tanto as da secção “Observatório” como as a “Competição”.

ADRIANA VAI À CIDADE

Seis anos depois de "O Anjo da Guarda", Margarida Gil regressa com um novo filme, "Adriana", centrado nas peripécias de uma jovem ingénua de uma ilha fictícia dos Açores que é enviada para o continente pelo pai na tentativa de “constituir família por métodos naturais”.

Parece estranho? Ora, se a premissa já é incomum, o filme ainda o é mais, seguindo a protagonista nos seus contactos com uma realidade urbana lisboeta em tudo contrastante com a calmaria da sua terra-natal. Uma oposição entre a pureza/inocência do meio rural e os constantes perigos e ameaças de ambientes citadinos seria uma ideia demasiado óbvia para a película, mas Margarida Gil não segue propriamente esse caminho.

O problema, no entanto, é que também nunca se percebe qual o rumo que o filme pretende adoptar. Este carácter aleatório e descoordenado do argumento é compensado por um ritmo suficientemente entusiasmante que nunca deixa "Adriana" cair no tédio, mas não impede que o filme possua muitos altos e baixos (os segundos bem mais regulares).

Os desequilíbrios evidenciam-se logo nos diálogos, que tanto podem ser competentes e até divertidos como insuportavelmente pretensiosos quando tentam ser literários e injectam referências culturais forçadas (como numa das últimas, e mais penosas cenas, com as supostas madames da alta sociedade).

A construção das personagens é pouco conseguida e nunca vai além da caricatura, que se por vezes até tem alguma graça (casos do transformista Saturnino ou do precoce Amadeu) nunca possibilita uma tensão dramática considerável. O elenco é também desigual, embora Ana Moreira volte a demonstrar os talentos interpretativos que a tornam numa das mais promissoras jovens actrizes nacionais, mesmo que as limitações da sua personagem não lhe possibilitem gerar uma prestação tão brilhante e magnética como a que ajudou a fazer de "Os Mutantes", de Teresa Villaverde, uma obra tão marcante. O trabalho de realização é competente e adequado à mescla de tons realistas e fantasiosos, e as belas paisagens açorianas são especialmente bem enquadradas.

Esta combinação de elementos leva a que "Adriana" seja um filme ousado, que por vezes parece desafiante mas que acaba por não convencer, descambando num final preguiçoso e mal resolvido que deita por terra a interessante, ainda que irregular, imprevisibilidade dos momentos anteriores. É uma película pouco convencional, e esse aspecto é meritório, só se lamenta que a execução seja tão inconstante, atirando "Adriana" para uma esforçada mas frágil mediania.

E O VEREDICTO É: 2/5 - RAZOÁVEL

quarta-feira, abril 27, 2005

A FLORESTA E OS TRÓPICOS

A programação do sexto dia do IndieLisboa prometia a exibição inédita de mais alguns filmes em competição, casos de «Private», do italiano Saverio Constanzo, e «The Forest for the Trees», da alemã Maren Ade. Contudo, devido a alguns equívocos alheios à organização, a cópia de «Private» não chegou a ser enviada para os responsáveis pelo festival, e em alternativa estes optaram pela exibição de «Tropical Malady», do tailandês Apichatpong Weerasethakul, um dos títulos das Sessões Especiais cujo primeiro visionamento deveria decorrer na noite da próxima sexta-feira.

Bizarro e misterioso, «Tropical Malady» venceu o Prémio do Júri no Festival de Cannes de 2004, mas os motivos que levaram a essa distinção ficam por esclarecer. O que inicialmente aparenta ser um olhar sobre a amizade/amor entre dois jovens, um soldado e um habitante de uma localidade rural, envereda depois, ao fim de uma hora pouco entusiasmante, para um jogo do gato e do rato entre um soldado e uma criatura de contornos místicos conhecida por atormentar alguns animais da zona.

Infelizmente, Weerasethakul não consegue injectar vida em nenhuma destas partes do filme. A primeira, apesar de tépida e entediante, ainda é minimamente tragável, mas a segunda expõe ocas e repetitivas perseguições na selva marcadas pela ausência de diálogos durante cerca de uma hora. O resultado é uma experiência cinematográfica indubitavelmente atípica e peculiar, mas pelos piores motivos – ritmo letárgico, personagens sem consistência, argumento nulo -, uma séria candidata a pior obra do festival (foi, de resto, uma das sessões onde as desistências do público foram mais significativas, dado o marasmo da acção do filme).

Ontem foram ainda exibidos mais títulos argentinos («Ana y los Otros», «La Mecha» e «Estrano»), e «Unknown Pleasures», de Jia Zhangke, no âmbito da secção “Herói Independente”. Para o final do dia, duas sessões esgotadas: a segunda exibição de «The Girl From Monday», de Hal Hartley, e a já referida estreia de «The Forest for the Trees», de Maren Ade, esta última uma das mais surpreendentes e recomendáveis obras em competição.

BRINCADEIRAS PERIGOSAS

A adolescência é uma das temáticas que mais potencial oferece enquanto assunto a ser abordado na sétima arte, salientando-se como uma etapa complexa e carregada de convulsões.
Contudo, muitos dos filmes que retratam essa fase não fazem mais do que reduzir as suas personagens a básicos e estafados estereótipos, gerando figuras caricaturais, de escassa densidade psicológica e emocional, imersas num conjunto de peripécias algo espalhafatosas e dominadas por um humor de gosto duvidoso. É certo que há excepções, mas a cinematografia norte-americana, em particular, tem oferecido múltiplos exemplos do género, obras indistintas de uma linha de montagem altamente formatada.

"Uma Pequena Vingança" (Mean Creek) é, por isso, um título digno de cuidada atenção, uma vez que mostra uma clara vontade em fugir aos lugares-comuns que minam muitos dos exemplos aparentados.

A primeira longa-metragem de Jacob Aaron Estes é um dos filmes independentes norte-americanos mais elogiados dos últimos tempos - aclamado tanto no Festival de Sundance como nos Independent Spirit Awards -, e percebe-se porquê. Esta história sobre um grupo de adolescentes de uma pequena localidade de Oregon que decide vingar-se de um colega gordo, forte e agressivo poderia ter originado um filme recheado de personagens de papelão envolvidas num inconsequente e gratuito exercício de suspense, mas o realizador aventura-se por domínios vincados por uma envolvente sensibilidade e um olhar atento sobre o universo retratado.

Comparado a "Bully - Estranhas Amizades", de Larry Clark, ou a "Stand by Me", de Rob Reiner, "Uma Pequena Vingança" consegue, apesar disso, criar um espaço próprio e exibir provas de criatividade. Se o paralelismo com a paradigmática obra de Reiner ainda se percebe, as semelhanças com os domínios de Larry Clark já não são tão evidentes, dado que a perspectiva de Estes, apesar de melancólica, nunca exibe as doses de aspereza e perturbação indissociáveis dos trabalhos deste cineasta.
Os tons etéreos e minimalistas de "Uma Pequena Vingança", carregados de silêncios e subtis jogos de olhares, colocam-no mais próximo de "Elephant", de Gus Van Sant, apesar de Estes não optar por uma narrativa tão experimental.

Todos os actores proporcionam interpretações notáveis, num conjunto de protagonistas constituído somente por jovens.
Rory Culkin, talvez o actor mais mediático do filme, encarna o circunspecto Sam, que está na origem do esquema de vingança; Trevor Morgan é igualmente eficaz como Rocky, o irmão mais velho de Sam; Carly Schroeder, a única presença feminina, compõe uma perspicaz e tridimensional Millie; Scott Mechlowicz destila carisma como o descontraído, mas muito amargurado Martin, o elemento mais velho do grupo; e Ryan Kelley constrói um enigmático e silencioso Clyde, alvo de troça por ser filho adoptivo de um casal gay.
Josh Peck é também convincente como George, a personagem contra a qual as restantes se unem para o derrotar com uma partida humilhante, mas cujo plano vai sendo reavaliado à medida que os cinco amigos se apercebem de que afinal George, por detrás da capa de alguma intolerância e brutalidade, apenas procura conquistar a atenção e a confiança dos seus colegas.

Jacob Aaron Estes sugere, desde o início do filme, que algo de penoso e triste irá acontecer a este grupo de adolescentes, e a partir do momento em que a vingança é delineada gera-se um ambiente marcado por uma discreta, mas sentida, inquietação.

À medida que George começa a ser percepcionado de forma diferente pelos seus colegas e pelos espectadores, equaciona-se a hipótese de inverter o projecto de vingança, mas os contrastes de personalidade dos jovens levam a que os acontecimentos escapem ao seu controlo e que a amena e tranquila viagem de barco se torne numa experiência determinante para todos.

Denso, contemplativo e agridoce, "Uma Pequena Vingança" é um belo, ainda que angustiante, retrato da adolescência, sobretudo sobre o assumir das responsabilidades e as formas de lidar com a culpa, o arrependimento e as consequências das acções.

É uma sólida primeira obra, que revela um cineasta capaz de criar atmosferas penetrantes e que apresenta aqui absorventes tons contemplativos. A realização e a fotografia ajudam a definir uma vertente realista, e a apropriada banda-sonora destaca-se como um precioso acompanhamento, tanto as composições instrumentais dos Tomandandy como as canções de profícuas bandas indie como os Eels, Spoon, Wilco ou Death Cab for Cutie (cujo tema "The Sound of Settling" é a escolha perfeita para a viagem de carro numa tarde solarenga, numa das sequências mais marcantes do início do filme).

Uma refrescante e memorável proposta do cinema alternativo norte-americano, "Uma Pequena Vingança" foca, para além do peso da responsabilidade e da culpa, questões como as novas famílias, o despertar da sexualidade, a confiança e as pressões de grupo, salientando-se como um muito inspirado retrato do crescimento, bem escrito e melhor interpretado, onde apenas lamentamos não poder passar mais tempo com aquelas personagens, com as quais parece já termos estado.

E O VEREDICTO É: 4/5 - MUITO BOM

LOTAÇÃO ESGOTADA

Ao quinto dia, na pasada segunda-feira, o IndieLisboa obteve uma forte adesão do público em várias sessões, desde o início da tarde até ao fim da noite. O documentário «Born Into Brothels» foi, sem dúvida, um dos filmes mais concorridos do dia, enchendo a sala do Fórum Lisboa e salientando-se já como um pequeno fenómeno (o filme já tinha sido exibido no primeiro dia do festival, e ainda assim voltou a registar muitos espectadores).

«Infernal Affairs III» (na foto abaixo) encerrou a trilogia de culto em mais uma sessão que, se não esgotou, esteve perto disso, o que confirma que esta saga poderia ter uma próspera passagem pelo circuito comercial português.

«Adriana», de Margarida Gil, a única longa-metragem portuguesa presente no IndieLisboa, foi alvo de grande curiosidade dos espectadores, que acederam em massa ao Fórum Lisboa e proporcionaram mais uma sessão muito concorrida. O filme agradou a uma faixa considerável da audiência (a mim, nem por isso), que não se cansou de o aplaudir não só no fim mas também durante a exibição, gerando ainda risos bastante audíveis e recorrentes.

Para além destas três obras, a programação do dia incluiu mais títulos do novo cinema argentino («Cabeza de Palo», «Caja Negra» e «Sábado»), novas séries de curtas-metragens e a reexibição de algumas obras em competição, como «4», «Folie Privée» e «Aaltra» (este atípico road movie é, de momento, o líder da votação do público) e da secção observatório («Família Rodante»).

terça-feira, abril 26, 2005

CÂMARA INDISCRETA

Decididamente, o documentário é um género que não pára de conquistar cada vez maiores faixas de público. Títulos mediáticos como "Bowling for Columbine" e "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore, e "Super Size Me - 30 Dias de Fast Food", de Morgan Spurlock, ou obras de esferas mais marginais como "Tarnation", de Jonathan Caouette, entre outros, foram elogiados e alvo de considerável atenção, provando que o cinema documental tem vindo a ganhar destaque e apresenta uma vitalidade inegável.

"Born Into Brothels" é mais um aclamado exemplo do género, um filme acarinhado internacionalmente e alvo de múltiplos prémios, como o mais recente Óscar de Melhor Documentário ou o Prémio do Público no Festival de Sundance. Zana Briski e Ross Kauffman apresentam aqui um trabalho que foca a sua relação com um grupo de crianças do bairro Sonagachi, de Calcutá, uma zona vincada pela prostituição, tráfico de droga e altos índices de criminalidade e um dos locais mais perigosos da capital indiana.

"Babai", de Kochi, foto retirada do site da fundação Kids With Cameras

Inicialmente, Zana Briski decidiu testemunhar o quotidiano das prostitutas de forma a fotografá-las, mas a experiência foi tão marcante que a fotógrafa acabou por se mudar para lá. Aos poucos, foi estabelecendo uma relação próxima com os filhos das prostitutas, ensinado-lhes fotografia e despertando-lhes assim o seu espírito criativo e sentido crítico.

Surpreendida com o talento de algumas dessas crianças, Briski tentou então aproveitá-lo de forma a fazer com que este pudesse auxiliá-las na busca de um rumo mais próspero e esperançoso para as suas vidas, praticamente condenadas às quase inultrapassáveis vias da prostituição, toxicodependência e marginalidade. "Born Into Brothels" apresenta essa tentativa de fuga à pobreza e a um futuro sem perspectivas, focando as peripécias de Briski e Kauffman na procura de soluções para a formação dos seus alunos.

Por vezes tristíssimo e à beira do desespero, noutros momentos mais espirituoso e reluzente, o documentário evidencia as débeis condições de vida da população daquele bairro, expondo em particular os dilemas de um grupo de crianças forçadas a contactar com as complexidades da idade adulta desde muito cedo.

Honesto e realista, "Born Into Brothels" é simultaneamente cru e sensível, apostando numa abordagem que trata as figuras retratadas com respeito, rejeitando assim a via fácil da exploração da miséria e da desgraça (é um labour of love e isso nota-se).

Mesmo as almas mais cínicas dificilmente resistirão a algumas contagiantes cenas com as sete crianças indianas, sobretudo nos episódios onde é claro o seu entusiasmo pelas potencialidades da fotografia e, por extensão, da arte em geral. Igualmente marcantes são os entraves colocados às tentativas de melhoria das condições de vida das crianças, visível nas sequências em Briski se desdobra numa inquietante rede de atribulações burocráticas.

"Born Into Brothels" é um recomendável e pertinente documentário, um poderoso e comovente olhar sobre realidades duras mas onde ainda se manifesta a hipótese de manter algumas doses de perseverança e idealismo. Esperemos que sim...

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

segunda-feira, abril 25, 2005

4

Inserindo algumas das novidades da programação – como o Indie Júnior -, o quarto dia da segunda edição do IndieLisboa concedeu um considerável realce às curtas metragens (tanto às da secção Competição como às do Observatório), assim como a mais alguns títulos do Herói Independente, dedicado ao novo cinema argentino, representado ontem por «Los Rubios», «Estraño» e «Modelo 73».
Este último, a primeira longa-metragem de Rodrigo Moscoso, narra as experiências de um grupo de três amigos adolescentes, desde os episódios com o seu carro novo, um Chevy Modelo 73, até aos problemas de relacionamento com as suas namoradas. Suficientemente simpático, embora um pouco ingénuo, o filme não esconde as limitações do orçamento e a irregularidade do elenco.

«Los Muertos», de Lisandro Alonso, foi outra das obras argentinas (em co-produção coma Espanha) do dia, inserida nas Sessões Especiais, que destacaram ainda a segunda parte da saga «Infernal Affairs» - muito concorrida, a confirmar o carisma da trilogia - e a ante-estreia de «Thumbsucker», de Mike Mills, realizador com experiência na área dos videoclips e considerado já uma das mais promissoras vozes do novo cinema independente norte-americano.

«Sund@y Seoul», do coreano Oh Myung-hoon, e «Dias de Santiago», do peruano Josué Méndez, foram as duas películas em competição, e «AE Fond Kiss», o novo drama de Ken Loach, foi novamente exibido.

Nos intervalos dos filmes, os cinéfilos e curiosos presentes tiveram mais uma oportunidade de passar pelo Bar Indie, local recomendado para descansar e trocar opiniões, ou pelo Playground FNAC, espaço onde estão disponíveis as obras que concorreram a esta edição do festival mas que, por algum motivo, não foram escolhidas. O arquivo inclui curtas e longas-metragens de múltiplos géneros e origens geográficas, como «Strange Little Girls», uma curta da britânica Savina Dellicour que segue as peripécias de duas adolescentes na noite londrina, cujas situações e ambientes não andam muito distantes dos domínios do drama indie «Treze – Inocência Perdida», de Catherine Hardwicke.

domingo, abril 24, 2005

AO TERCEIRO É DE VEZ (?)

Ontem, o terceiro dia do IndieLisboa, ficará como um dos que teve uma das mais entusiasmantes programações. O Director’s Cut de «The Big Red One», de Samuel Fuller, acrescenta quarenta minutos ao original devido à reformulação de Richard Schickel e Brian Jamieson, que incluíram nesta nova versão algumas cenas do negativo original.

Um dos títulos mais fortes do festival, este portentoso épico de guerra, estreado em 1980, mantém-se ainda como um surpreendente testemunho de alguns episódios de um grupo de soldados norte-americanos durante a Segunda Guerra Mundial (crítica em breve). Infelizmente, a adesão do público a esta sessão não foi das mais significativas, à semelhança do que aconteceu com «Mean Creek», de Jacob Aaron Estes, um brilhante e melancólico olhar sobre a adolescência onde um grupo de jovens é forçado a lidar com o peso da responsabilidade e da culpa. Uma das ante-estreias do IndieLisboa, o filme tem exibição comercial em salas nacionais prevista para o início de Maio e é, seguramente, uma das melhores surpresas da temporada (crítica em breve).

Ao contrário do que sucedeu com «The Big Red One» e «Mean Creek», «Infernal Affairs» foi apresentado numa sala preenchida, expondo o considerável hype que já circulava entre cinéfilos e curiosos. Uma das obras integradas nas Sessões Especiais, é a primeira da muito aclamada trilogia de Andrew Lau e Alan Mak, que revitalizou o cinema de acção de Hong Kong. As sequelas deste muito eficaz thriller serão exibidas hoje e amanhã em visionamentos irrepetíveis (crítica em breve...uff!!).

Ao longo do dia foram ainda destacados alguns títulos da secção “Herói Independente” dedicada ao cinema argentino - «Balneários», «La Libertad» e «Ana y los Otros» -, assim como «Plataforma» (na foto), uma das revisitações à cinematografia de Jia Zhangke, que proporciona um olhar sobre as metamorfoses da sociedade chinesa na década de 80. A programação incluiu ainda «To Take a Wife» e «Aaltra», dois dos filmes em Competição, e mais uma série de curtas da secção “Observatório”.

Hoje vou tentar ver «Modelo 73», da secção argentina, e «Internal Affairs II». No fim do dia, o cinema dá lugar à música de Rufus Wainwright, no Coliseu...

PARA MAIS LOGO...

Depois de um memorável concerto em Novembro de 2004 (o gonn1000 esteve lá e gostou) e da recente actuação na primeira parte dos Keane (enfim, adiante...), Rufus Wainwright regressa hoje a palcos nacionais para um espectáculo no Coliseu de Lisboa (e amanhã no do Porto). Por isso, vou reduzir a minha dose diária de Indie Lisboa para passar por lá às 21 horas. Depois conto como foi...

O APARTAMENTO

Quase inédito entre nós - apenas um dos seus filmes, "Lilya 4-Ever", teve exibição comercial -, o sueco Lukas Moodysson é, apesar disso, um dos mais emblemáticos nomes de culto do cinema europeu recente – elogiado por figuras como Ingmar Bergman -, cuja obra engloba curtas e longas metragens a par de experiências com o documentário.

"A Hole in My Heart", a sua quarta longa-metragem, debruça-se sobre quatro personagens que partilham um apartamento: Rickard, um pornógrafo amador; Eric, o seu filho adolescente; Geko, um amigo de Rickard que colabora no seu filme; e Tess, a actriz feminina da película pornográfica em preparação.

Denso e claustrofóbico, "A Hole in My Heart" segue estas figuras e regista os mais variados aspectos do seu quotidiano conturbado, que decorre quase sempre na casa de Rickard (raras são as cenas de exteriores, dotando o filme de uma forte carga intimista). Moodysson aprofunda aqui os consideráveis tons realistas que caracterizam a sua obra, recorrendo à câmara à mão e tornando este projecto num arriscado e bizarro home-movie que percorre, a espaços, domínios próximos do inquietante "Tarnation", de Jonathan Caouette, com o qual partilha um olhar cru e quase documental.

"A Hole in My Heart" possui, sobretudo na primeira meia-hora, muitos dos atributos que o tornam candidato a mais um “filme-choque”: imagens de sexo mais ou menos explícito, algumas doses de escatologia, personagens com ténues limites morais e demais situações grotescas prontas a gerar polémica e desconforto. No entanto, depois de obras de cineastas como Larry Clark, Lars von Trier, Michael Haneke e Catherine Breillat, entre outros, terem apresentado (quase) todo o tipo de experiências limite, até que ponto é que esta proposta de Moodysson poderá surpreender, inquietar ou chocar os mais familiarizados com os trabalhos desses autores?

De facto, o que o realizador sueco aqui apresenta não parece mais do que um freak-show algo gratuito que parece esgotar-se na sua própria (pseudo) irreverência, tornando-se cansativo e entediante ao fim de poucos minutos. Contudo – e isso redime parcialmente o filme -, "A Hole in My Heart" evolui depois para um negro e desencantado melodrama, abrangendo áreas que vão desde a difícil relação pai/filho até à procura da fama ou à obsessão pela imagem, gerando um soturno retrato de solidão e dilaceração familiar.

Especialmente curioso é o contraste de atmosferas do filme. O quarto de Eric é um espaço de reclusão e ambientes soturnos, vincado pela escuridão e música experimental, enquanto que as restantes divisões do apartamento servem de cenário para as peripécias frenéticas e vibrantes do seu pai e dos dois actores porno, contaminadas por canções tecno de gosto duvidoso.

"A Hole in My Heart"
acaba por não ser um objecto tão transgressor como algumas vozes defendem, mas a sua perspectiva sobre as relações humanas num mundo (ou mundos) em ruptura e tensão faz com que o filme contenha algo de singular e absorvente, ainda que o resultado não seja mais do que interessante.

E O VEREDICTO É: 2/5 - RAZOÁVEL

INDIE LISBOA: DIA 2

Ao segundo dia, na passada sexta-feira, o IndieLisboa começou a apresentar obras das múltiplas secções, começando pelo primeiro conjunto de Curtas-Metragens, ao início da tarde, e terminando com um dos títulos em Competição, «4», da russa Ilya Khrzhanovsky. Contudo, os filmes que despertavam maior expectativa eram os de três nomes marcantes do cinema independente actual: Hal Hartley, Lukas Moodysson e Todd Solondz.

«The Girl From Monday», de Hartley, é mais uma atípica experiência do realizador de culto norte-americano, mesclando drama e ficção científica; «A Hole in My Heart», do sueco Moodysson, é um arriscado home-movie susceptível de gerar controvérsia (como já é habitual na obra do cineasta) e «Palindromes», de Solondz, volta a centrar-se nos subúrbios da América para apresentar um desencantado retrato da adolescência.

«Le Pont des Arts» (ver crítica no post abaixo) assinalou o regresso do francês Eugène Green, cujo filme anterior, «Le Monde Vivant», recebeu o Grande Prémio de Longa-Metragem da primeira edição do IndieLisboa. A nova película de Green foca dois jovens que, apesar de não se conhecerem pessoalmente, partilham as mesmas inquietações e dilemas, e o realizador esteve presente na sessão para uma pequena conversa com o público.

«Mundo Grua», de Pablo Trapero, e «Sábado», de Juan Villegas, constituíram os títulos em destaque da programação dedicada ao novo cinema argentino, enquanto que «Unknown Pleasures» e «In Public» foram as obras de Jia Zhangke exibidas, inaugurando a secção “Herói Independente”.

À semelhança do que sucedeu na inauguração, também este segundo dia do IndieLisboa obteve uma considerável adesão, congregando um público diversificado q.b., embora a faixa maioritária tenha sido a de jovens universitários e urbanos.

DUAS VIDAS E UM RIO

Ambientado na realidade parisiense do início dos anos 80, "A Ponte das Artes" (Le Pont des Arts) é o novo filme de Eugène Green, cujo projecto anterior, "Le Monde Vivant", foi distinguido com o Grande Prémio de Longa-Metragem na primeira edição do IndieLisboa.

"A Ponte das Artes" centra-se em dois jovens, Pascal, um universitário desmotivado, e Sarah, uma cantora lírica com incertezas acerca do seu talento. Simultaneamente cómico e trágico, o filme aborda as inseguranças e tensões do fim da adolescência e a desorientação dos primeiros dias da idade adulta, onde é difícil definir os caminhos a seguir.

Eugène Green apresenta uma premissa interessante, sugerindo uma “ponte” entre as duas personagens que, apesar de não se conhecerem pessoalmente, encontram-se interligadas devido à paixão pela arte e à forte atenção que lhe dedicam no seu dia-a-dia. No entanto, a película raramente resulta, pois a dupla principal – sobretudo a actriz Natacha Régnier – manifesta uma quase ausência de carisma, convicção e consistência, interpretando personagens supostamente complexas e inquietas mas que se limitam a debitar frases pseudo-profundas e a agir de forma monocórdica e insípida. As cenas de Pascal com a namorada são especialmente entediantes e expõem uma considerável falta de química, gerando longos momentos rígidos e inertes.

A maioria das tentativas de humor é igualmente desinspirada, sendo o caso mais gritante a sequência onde o irritante encenador gay se aventura numa demonstração do seu talento interpretativo. Mais conseguido, mas igualmente unidimensional, a personagem “O Inominável”, o austero maestro de Sarah, oferece alguns momentos de humor negro, mas não consegue salvar a pouca frutífera vertente humorística do filme. Green sai-se melhor no desenlace, vincado por uma envolvente aura poética que não compensa, no entanto, as mais de duas horas, geralmente balofas e arrastadas, que o antecedem. Uma desilusão.

E O VEREDICTO É: 1,5/5 - DISPENSÁVEL

BLINKS & LINKS

Obrigado ao Eur3ka por me ter blinkado no 100th Window ;)

sexta-feira, abril 22, 2005

INDIE 2 DIA 1

Cerca de meio ano depois da primeira edição, o segundo IndieLisboa foi alvo de uma concorrida sessão de abertura, onde «Born Into Brothels: Calcutta’s Red Light Kids», de Zana Briski e Ross Kauffman, efectuou o baptismo de fogo ontem, no Fórum Lisboa. Um dos mais elogiados documentários dos últimos tempos – distinguido com um Óscar -, o filme aborda os filhos das prostitutas de Calcutá e a sua paixão pela fotografia, encarada por estas crianças como uma forma de contornar as difíceis condições de vida a que estão sujeitas (tencionava ver este, mas como só podiam entrar nessa sessão os portadores de convite teve de ficar para a próxima...).

«Yesterday Once More», do oriental Johnnie To, trouxe um filme de golpe com traços de drama e humor (crítica no post abaixo), e «AE Fond Kiss» assinalou o regresso do britânico Ken Loach, numa obra marcada onde o amor de um jovem casal – um paquistanês e uma irlandesa – é ameaçado pelos contrastes culturais. Estes dois títulos constituíram a programação do cinema King, que exibiu ainda a primeira série de curtas-metragens da secção Observatório.
Da programação de hoje pretendo assistir a «Le Pont des Arts», de Eugène Green (King 1; 18h45m), e ainda não me decidi entre «Palindromes», de Todd Solondz (Fórum Lisboa; 21h30m), ou «A Hole in My Heart», de Lukas Moodyson (King 2; 22h00m). Depois destacarei estes e outros títulos aqui no gonn1000 e no Cinema 2000...Bons Filmes ;)

O CASO DO COLAR

Johnnie To, considerado um dos mais proeminentes e reputados realizadores de Hong Kong, possui uma filmografia com mais de 25 anos e tem gerado obras que se relacionam com formatos mainstream a par de outras que seguem uma vertente mais alternativa e independente.

"Yesterday Once More" (Lung Fung Dau) denota essa dualidade do seu cinema, mesclando géneros e referências para narrar a conturbada relação – que não chega a ser de amor/ódio, mas quase – entre um jovem casal da alta sociedade para quem a vida é um jogo e o risco é uma realidade constante. Alex e Mandy Thief, apesar de divorciados, partilham ainda uma peculiar cumplicidade e desafiam-se mutuamente, desenvolvendo em paralelo os seus hábitos cleptomaníacos desde a adolescência.

Johnnie To foca as peripécias que se centram em torno de um belo e valioso colar que o novo noivo de Mandy lhe oferece mas que é repentinamente roubado por Alex. A partir daqui, "Yesterday Once More" segue as convenções do filme de golpe, apostando em algumas reviravoltas assim como num recurso frequente ao humor (desde o burlesco à screwball comedy).

No entanto, os tons leves e lúdicos dos primeiros dois terços do filme são interrompidos quando o realizador envereda inesperadamente por domínios do drama amoroso e oferece alguns momentos mais melancólicos, longe da vertente ligeira e espirituosa que dominou a acção até aí. Esta mistura é desequilibrada, tendo em conta que a primeira fase da película, embora divertida, é algo inconsequente, e a segunda não chega a despoletar um impacto emocional significativo, tornando "Yesterday Once More" num híbrido desigual.

Johnnie To acerta na escolha dos protagonistas - Andy Lau e Sammi Cheung, cuja química possibilita certos episódios bem conseguidos -, assim como num argumento que é, por vezes, engenhoso, mas o balanço não vai além de uma mediania curiosa e simpática. Muito pouco, portanto, dados os múltiplos elogios e vénias de que o cineasta é alvo, mas que dificilmente se aplicam a um filme com tanto de agradável como de efémero.

E O VEREDICTO É: 2,5/5 - RAZOÁVEL

BLINKS & LINKS

Obrigado ao meu colega indie Daniel Pereira - que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente ontem no festival do momento - por me ter blinkado no Escrever Cinema. Cinéfilos e curiosos, espreitem este blog porque vale a pena...

quinta-feira, abril 21, 2005

O LADO NEGRO DA POP

Uma das bandas mais subestimadas do panorama musical actual, os Sneaker Pimps têm percorrido um interessante percurso desde os últimos anos da década de 90, combinando influências para gerar um universo - não só sonoro mas também visual - específico e peculiar.

"Becoming X", o disco de estreia, trouxe-lhes um relativo sucesso devido aos singles "6 Underground" e "Spin Spin Sugar", onde a cativante voz de Kelli Ali era acompanhada por envolventes atmosferas trip-hop. Em "Splinter", o segundo registo de originais, Chris Corner ocupou o cargo de vocalista e o resultado foi um álbum ainda mais intenso e estimulante, ainda que a recepção da crítica e do público tenha sido pouco consensual.

Com "Bloodsport", de 2002, o grupo destaca-se, mais do que nunca, como um projecto de culto, longe das aproximações ao mainstream que marcaram os seus primeiros passos. Cruzando referências abrangentes, o espectro sonoro do terceiro álbum dos Sneaker Pimps mescla ambientes trip-hop, rock, industriais, pop, electro e góticos, gerando uma sedutora aura de tensão e mistério que vicia a cada audição.

A banda sempre criou canções que, apesar de relativamente acessíveis e por vezes bastante catchy, são mais do que inócuos pedaços de música para enfeitar playlists. Carregadas de densidade e mistério q.b., as composições de "Bloodsport" não são excepção, exibindo um forte apelo dançável a par de um conteúdo lírico menos imediato, mas suficientemente intrigante.

O single "Sick" é um exemplo de elegância e sofisticação pop, recorrendo a uma utilização eficaz dos samples e proporcionando um refrão apelativo. Momentos como o enérgico "Kiro TV", o denso "The Fuel", ou o inebriante "Think Harder" congregam entusiasmantes cargas de sombra e inquietação, com expoente máximo no fenomenal "Loretta Young Skills", uma das melhores canções da discografia dos Sneaker Pimps.

Tão determinante como o absorvente recurso à electrónica é a prestação vocal de Chris Corner (pontualmente bizarra e andrógina, à semelhança do aspecto do músico), essencial para que as canções consigam ser invulgarmente enigmáticas e penetrantes.
Comprova-se, então, que o cantor foi uma óptima escolha para substituir Kelli Ali, que desistiu do grupo após o primeiro álbum para se dedicar a uma carreira a solo.

Os detractores poderão acusar "Bloodsport" de ser um disco demasiado derivativo, dados os visíveis paralelismos com nomes como os Massive Attack, Nine Inch Nails, Portishead, Gus Gus, Depeche Mode, Placebo ou Tricky.
Embora não estejam à altura de algumas dessa referências, os Sneaker Pimps geram, ainda assim, uma pop negra com consideráveis marcas de personalidade, não obstante as potenciais influências. O resultado é um álbum quase sempre interessante (apesar de alguns momentos mais convencionais, como "Blue Movie") e ocasionalmente brilhante, que ainda está a tempo de ser (re)descoberto.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

quarta-feira, abril 20, 2005

PERDIDOS NA TRADUÇÃO

Há filmes assim… Perante o trailer e outros elementos do marketing de “Espanglês” (Spanglish), muitos espectadores poderiam ser levados a pensar que a película era mais um concentrado de gags inseridos num argumento indistinto e descartável, proporcionando mais uma banal comédia mainstream norte-americana.
O facto de Adam Sandler estar entre os nomes do elenco apenas reforçava ainda mais essa ideia, tendo em conta os trabalhos habituais do actor - sim, houve “Punch Drunk Love – Embriagado de Amor”, de Paul Thomas Anderson, mas é uma rara excepção – e, por isso, o filme não prometia apresentar nada de especialmente original ou estimulante.

Contudo, se “Espanglês” está longe de ser uma obra-prima, também não envereda por domínios tão fáceis e rotineiros como sugeria, tornando-se, de resto, numa agradável surpresa e num título bastante meritório.
Pormenor relevante: James L. Brooks está a cargo da realização, e o cineasta já provou que consegue gerar títulos onde o drama e a comédia se mesclam de forma satisfatória, proporcionando sucessos de crítica e de público como “Laços de Ternura”, “Edição Especial” e “Melhor é Impossível”.

Neste novo projecto, Brooks oferece uma interessante perspectiva sobre a (falta de) comunicação, o choque de culturas, a identidade e as relações familiares, abordando estas questões de forma sóbria e honesta num filme que cativa e envolve.

No cerne da acção encontra-se Flor, uma jovem mexicana que parte com a filha, Cristina, para os Estados Unidos e vai trabalhar em casa de uma família californiana da classe média alta. Ao fim de algum tempo, as duas vão viver para casa dos patrões, e aí adensa-se um tenso e progressivo contraste de mentalidades, valores e códigos culturais, onde os dramas pessoais das personagens (e são muitas) começam a interceptar-se.

“Espanglês” é um filme de actores, uma aposta claramente ganha quando as interpretações são convincentes, tanto no caos dos protagonistas como no dos secundários. Paz Vega, que já brilhou em filmes de Pedro Almodóvar ou Júlio Medem, acerta na mistura de sensibilidade e seriedade; Adam Sandler contorna registos histriónicos e segue rumos mais subtis, e Téa Leoni é exímia no papel de neurótica em convulsão, unindo dor e complexidade.
Shelbie Bruce encarna a jovem Cristina de forma não menos notável – a comprovar na cena da tradução entre o diálogo de Sandler e Vega - e a veterana Cloris Leachman é igualmente subtil na sua composição de matriarca vivida e magoada.

O trabalho de realização de Brooks é discreto e minimalista, nunca caindo em caminhos ostensivos e dando espaço para as personagens respirarem, e o argumento é bem escrito, conseguindo conciliar momentos de humor com cenas de considerável tensão dramática.

Mesmo assim, “Espanglês” nem sempre resulta, pois embora se afaste de muitos lugares comuns também abusa, a espaços, de um sentimentalismo algo óbvio e dispensável. No entanto, a honestidade e carisma do filme sobrepõem-se a esses pontuais desequilíbrios e fazem com que esta seja uma experiência cinematográfica muito digna e agradável.

E O VEREDICTO É: 3,5/5 - BOM

terça-feira, abril 19, 2005

SMELLS LIKE INDIE SPIRIT

A segunda edição do IndieLisboa está quase a começar (depois de amanhã), e foi com agrado que descobri que serei o correspondente do Cinema 2000 durante o evento, juntamente com o Daniel Pereira. Tentaremos fazer a cobertura diária do festival, e irei relatando tudo por estas paragens. Abaixo consta a minha antevisão...

A primeira edição obteve uma considerável recepção do público e apresentou-nos, em primeira mão, títulos marcantes como «Antes do Anoitecer», «Tarnation», «Noite Escura» ou «Super Size Me – 30 Dias de Fast Food», entre muitos outros.

Agora, na aguardada “sequela”, o Festival de Cinema Independente (IndieLisboa para os amigos) regressa com mais e (esperamos) melhor, apresentando novamente alguns dos mais surpreendentes e ousados filmes oriundos dos cinco continentes.

As obras das secções "Competição", "Observatório", "Herói Independente" e "Sessões Especiais" poderão ser visionadas no Fórum Lisboa e no cinema King, reflectindo o alargamento da oferta relativamente à primeira edição (que decorreu nas salas do S. Jorge). Em 2004 o evento trouxe-nos 79 filmes, e agora regressa com 130, oferecendo um recheado cardápio entre 21 de Abril e 1 de Maio.

Perante uma selecção tão vasta é sempre arriscado destacar títulos, realizadores ou secções, mas o Director’s Cut de «O Sargento da Força Um», de Samuel Fuller, ou o "Herói Independente" deste ano, o cineasta chinês Jia Zhangke - com uma série de filmes que, exceptuando «Plataforma», são inéditos em salas nacionais -, salientam-se como pontos de paragem quase obrigatória.

A trilogia «Infernal Affairs», de Andy Lau e Alan Mac, uma prova do melhor cinema contemporâneo de Hong Kong, promete ser uma das ante-estreias mais concorridas, tendo em conta o relativo hype internacional, e as novas obras de acarinhados realizadores de culto – Ken Loach, Lukas Moodyson, Todd Solondz, Johnny To ou Hal Hartley - constituem outra proposta tentadora para o fiel público de cinéfilos e curiosos.

Para além dos veteranos da cena indie, o festival proporciona ainda a descoberta de alguns novos nomes destas esferas, casos de de Zana Briski e Ross Kauffman, com «Born Into Brothels», vencedor do Óscar de Melhor Documentário; Pawel Pawlikowski, com um intrigante olhar sobre a adolescência em «My Summer of Love»; Mike Mills, mais um realizador proveniente dos videoclips, com o bizarro «Thumbsucker»; ou Jacob Aaron Estes, cujo denso e negro (anti) teen movie «Mean Creek» tem causado algum burburinho.

Se puderem passem por lá ;)

180 DAYS LATER

Parece que foi ontem que deu os primeiros passos na blogosfera, mas o gonn1000 já completou seis meses... Por isso, obrigado a todos os que têm contribuído para alimentar este blog, tanto os leitores assíduos (é verdade, já há um ou dois) como ocasionais curiosos de passagem...Daqui a mais seis meses espero estar aqui a celebrar o primeiro aniversário. Estão desde já convidados ;)
Já agora, se tiverem sugestões, críticas, reclamações ou propostas de eventuais alterações, estejam à vontade...

BLINKS & LINKS

Obrigado ao Randomsailor por me blinkar no seu novo blog Last Call - Lisboa (R.I.P. Lost By Choice...). Boa sorte ;)

segunda-feira, abril 18, 2005

IDENTIDADE DESCONHECIDA

Anna (Nicole Kidman) é uma jovem viúva da classe média alta nova-iorquina que está prestes a casar, uma década depois do seu marido ter falecido. Contudo, subitamente surge um elemento que colocará em causa a realização do seu novo matrimónio, uma vez que um rapaz de 10 anos (Cameron Bright) lhe revela que o seu ex-marido, Sean, reencarnou no seu corpo. Esta revelação origina uma conturbada teia de acontecimentos, onde Anna e a sua família hesitarão entre a crença e o cepticismo face a tão insólita situação.

Com esta premissa, Jonathan Glazer gera "Birth - O Mistério", o seu segundo filme (o primeiro, "Sexy Beast", não passou por salas nacionais), misto de drama, romance, suspense e fantástico. A película gerou polémica devido a algumas cenas entre Kidman e Bright, alimentando a tensão em torno dos escândalos de pedofilia, embora Glazer não aprofunde muito essa questão e recuse situações típicas de um "filme-choque" (com eventual excepção para a cena do banho).

Proposta de reflexão acerca dos limites do amor, da credulidade humana e da tolerância, "Birth - O Mistério" possui em curioso (e delicado) ponto de partida, mas infelizmente a execução raramente entusiasma.

Glazer acerta na direcção de actores - além da irrepreensível dupla protagonista, há sólidos secundários como Danny Huston, Lauren Bacall ou Anne Heche -, na criação de atmosferas inebriantes - uma absorvente Nova Iorque de tons melancólicos e outonais -, na fotografia e na banda-sonora, mas falha num dos pontos essenciais: o argumento.

Se o início do filme é promissor, o seu desenvolvimento é pouco mais do que redundante e enfadonho, e não se percebe onde está o mistério que o título anuncia, tendo em conta que uma das primeiras cenas lança óbvias pistas para a resolução do suposto enigma.

A construção das personagens é débil, embora Cameron Bright tenha uma presença intrigante (o jovem actor foi também um dos poucos pontos positivos do fraco "Godsend - O Enviado") e Nicole Kidman seja sempre competente, com ocasionais momentos de fulgor como na bem conseguida cena da Ópera (num soberbo close-up pleno de intensidade). No entanto, o duo protagonista não consegue compensar os desequilíbrios do argumento nem uma narrativa com um ritmo letárgico e arrastado, e assim "Birth - O Mistério" não vai além de uma frágil mediania.

Jonathan Glazer saiu-se bem nos videoclips, colaborando com nomes fortes como os Massive Attack, Blur ou Radiohead, mas a julgar pela sua experiência nas longas-metragens o seu contributo para a sétima arte não é assim tão surpreendente. Pelo menos enquanto o seu trabalho de realização (rigoroso e profissional, sublinhe-se) não for acompanhado por um argumento à altura...

E O VEREDICTO É: 2/5 - RAZOÁVEL

domingo, abril 17, 2005

AQUELE BEAT...

O sexto álbum dos Da Weasel corre o risco de ficar na memória de muitos como "o disco que inclui a canção "Re-Tratamento"", dada a alta rotação que o mediático single de apresentação obteve na maioria das rádios e canais televisivos em 2004, tornando-se num dos temas mais emblemáticos do ano.

É certo que a banda de Almada já tinha gerado outras canções com um êxito considerável, mas nada que se comparasse ao primeiro single de "Re-Definições". Contagiando um público que vai quase dos 7 aos 77, o tema ajudou a colocar o grupo em destaque em 2004, consolidando a fase de ascensão que exemplos anteriores como "Outro Nível" ou "Tás na Boa" já antecipavam.

No entanto, "Re-Definições" não é um daqueles dicos que vale apenas por um single, pois proporciona um cardápio de apelativos momentos que mesclam hip-hop, funk, rock, dub e soul, mantendo o espírito ecléctico que a banda manifestou desde o início.

Embora contenha uma forte carga dançável e vibrante, o álbum congrega também densidade q.b., com letras que constituem um atento e perspicaz olhar sobre o quotidiano urbano, apostando tanto em vertentes mais descontraídas como em atmosferas mais soturnas.

Pac Man, que para além de vocalista assina as letras (em colaboração com Virgul), exibe aqui mais provas de subtileza nos seus crus e directos retratos do dia-a-dia, conservando também a voz incisiva e carismática. Momentos como o áspero "GTA" são exemplos dessa crueza, onde Pac dá força à sua postura crítica em considerações como "Já não há pão, só há circo/ e esse há aos molhos" "Pára para pensar em quem se decide idolatrar" ou "Eu recuso-me a entrar no esquema, desculpa lá o mau jeito".

No álbum anterior, "Podes Fugir Mas Não te Podes Esconder", os Da Weasel colaboraram com os cubanos Orishas em "Sigue, Sigue!", e em "Re-Definições" o contacto com outros nomes volta a manifestar-se.
Desta vez, os escolhidos foram Manel Cruz (dos Pluto e dos extintos Ornatos Violeta), que brilha no excelente "Casa (Vem Fazer de Conta)", o grande momento do disco, e a jornalista Anabela Mota Ribeiro, que dá voz ao pouco conseguido "Re-Definições".

Apesar de ser suficientemente diversificado, o sexto álbum dos Da Weasel não é tão desafiante como alguns dos seus registos anteriores, casos de "3º Capítulo" ou "Iniciação a uma Vida Banal - O Manual". O disco revela uma banda com uma personalidade vincada e um universo próprio, mas que não se desvia muito dos domínios que já pisou antes, apostando nas mesmas sonoridades e ambientes. Há várias boas canções, mas são raros os episódios que conseguem surpreender, expondo um nível qualitativo acima da média mas sem grandes cargas de inspiração.

Embora seja mais interessante e coeso do que "Podes Fugir Mas Não te Podes Esconder", "Re-Definições" apresenta uns Da Weasel demasiado iguais a si próprios, o que não o torna num mau disco - a espaços é irresistível, como em "Carrossel" ou "Baile (Aquele Beat)" -, mas também não expõe tanta ousadia como se esperaria. Talvez o próximo disco deva chamar-se, então, "Re-Invenções"...

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

sábado, abril 16, 2005

UM LONGO FILME DE NOIVADO

Quando, em 2003, se estreou na realização de longas metragens com "Joga Como Beckham" (Bend it Like Beckham), a indiana Gurinder Chadha consegui alcançar algum sucesso e mediatismo através desse pequeno filme de baixo orçamento, que agradou a uma considerável parte da crítica e do público.

Mistura de drama e comédia, a película focava o choque de culturas, nomeadamente a indiana e a britânica, e possuia méritos suficientes para se tornar numa obra simpática e divertida, ainda que pouco ambiciosa e algo irregular.

Com "A Noiva Indecisa" (Bride & Prejudice), a realizadora volta a investir em temáticas semelhantes, oferecendo mais um olhar sobre os costumes indianos e a readaptação destes aos hábitos e comportamentos da sociedade ocidental de hoje.

Levemente inspirado no romance "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen, o filme debruça-se sobre Lalita, uma jovem indiana que se vê incitada pelos pais a casar rapidamente, mas resiste pois defende que só aceitará fazê-lo por amor e nunca por dinheiro. A obstinada renúncia ao matrimónio acaba por demover-se quando a protagonista conhece um ocidental proveniente de famílias abastadas e aos poucos descobre que partilha com ele múltiplos pontos comuns.

Gurinder Chadha apresenta uma história de amor com alguns toques de comédia, centrando-se nos obstáculos despoletados pelos contrastes culturais. Repete-se, em parte, a fórmula de "Joga Como Beckham", mas desta vez os resultados não são tão convincentes e apelativos.

Os desequilíbrios começam nos actores, desprovidos de carisma e credibilidade, em especial o par principal (a belíssima Aishwarya Rai e Martin Henderson), que apesar da inegável fotogenia não possui química nem vibração. Outro dos problemas é o rotineiro e previsível argumento, com uma escassa tensão dramática e raros momentos surpreendentes.

As personagens são unidimensionais e genéricas e as situações não evitam os rodriguinhos fáceis das mais preguiçosas comédias românticas ou mesmo um dispensável registo folhetinesco.

"Joga Como Beckham" continha uma série de inspiradas cenas de típico humor britânico, mas em "A Noiva Indecisa" esses episódios são quase nulos e o tom espirituoso dá lugar a uma pouco conseguida vertente melodramática. A realizadora insere alguns momentos basedos nos musicais de Bollywood de forma a dinamizar a acção, mas mesmo estes tornam-se cansativos, apostando num kitsch redundante e pouco natural.

Enquanto perspectiva sobre as diferenças culturais, o filme é simplista e ingénuo, e como entretenimento é demasiado insípido, arrastado e indistinto, repetindo todos os clichés boy meets girl. Uma oportunidade desperdiçada.

E O VEREDICTO É: 1,5/5 - DISPENSÁVEL

sexta-feira, abril 15, 2005

DO 8 AOS 80

Uma das bandas-revelação de 2004, os norte-americanos The Killers conseguiram, com o seu disco de estreia, "Hot Fuss", gerar um dos pequenos grandes fenómenos do ano, fazendo a ponte entre esferas alternativas e áreas assumidamente mainstream. Parte da responsabilidade foi do single "Somebody Told Me", uma carismática canção que une o apelo da pop e a energia do rock.

Presença inesperada - ou nem por isso, tendo em conta o refrão catchy e viciante - nas playlists mundiais e com destaque assegurado na MTV, o tema de apresentação do álbum gerou curiosidade em torno destes quatro rapazes de Las Vegas.

"Hot Fuss", para muitos um dos discos indispensáveis dos últimos tempos, é um curioso melting pot de referências e sonoridades, onde há espaço para o indie rock, new wave, pós-punk, (brit) pop e mesmo algumas piscadelas de olho ao gospel.

Devedor de marcantes projectos de inícios dos anos 80, como os New Order, The Cure, Duran Duran ou The Smiths, o debute dos The Killers consegue, no entanto, apresentar alguns traços próprios da banda, não obstante as influências.

Expondo uma aura retro, mas não excessivamente nostálgica, o disco pisa territórios próximos dos dos Franz Ferdinand, Interpol, The Faint, Yeah Yeah Yeahs, The Strokes ou TV on the Radio, entre outros, salientando-se, tal como estes, como uma peça representativa do que de mais interessante se faz no rock actual (particularmente da facção inspirada na alvorada da década de 80).

Embora meritório, o álbum fica uns furos abaixo de obras de eleição como "Turn on the Bright Lights" ou "Franz Ferdinand", uma vez que, apesar de ser um trabalho intrigante, é também demasiado irregular.

Há em "Hot Fuss" canções portentosas como o já referido "Somebody Told Me" ou outros eficazes singles - o melancólico "Smile Like You Mean It" ou o resplandecente "Mr. Brightside" -, mas estes temas convivem com alguns episódios menos envolventes, de que é exemplo o redundante "All These Things That I've Done" (cuja letra inclui banalidades forçadas como "I've Got a Soul but I'm Not a Soldier").

A ousadia de momentos como o inebriante "Andy You're a Star" – tema onde os sintetizadores se mesclam eficazmente com a cativante voz de Brandon Flowers - não ocorre tão frequentemente como se esperaria, tendo em conta a formatação e convencionalismo de algumas composições, tornando "Hot Fuss" num disco satisfatório mas que só consegue brilhar a espaços. Nada que impeça, no entanto, que esta seja uma das boas surpresas de 2004, revelando mais um promissor projecto.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM

quinta-feira, abril 14, 2005

VIDAS REAIS

Um dos filmes mais elogiados do início de 2005, multipremiado na mais recente edição dos Óscares, onde foi o vencedor em quatro categorias (Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actriz Principal e Melhor Actor Secundário), "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" é mais um inquietante drama gerado por um dos principais cinestas norte americanos contemporâneos.

Clint Eastwood, que é aqui o realizador e actor principal (e colabora ainda na banda-sonora), proporciona uma obra marcada por atmosferas de melancolia e desolação que servem de alicerce a um vibrante olhar sobre as relações humanas.

"Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" centra-se em Maggie Fitzgerald (Hilary Swank), uma jovem empregada de café que, apesar de ter tido uma vida pouco próspera, mantém ainda a esperança em consolidar o seu principal desejo: tornar-se uma pugilista profissional. Contudo, à medida que se aproxima dos 30 anos, a concretização dessa ambição torna-se cada vez mais improvável, por isso Maggie tenta convencer Frankie Dunn (Clint Eastwood), um veterano e reputado treinador de boxe, a auxiliá-la no seu ansiado projecto. Relutante, Dunn coloca múltiplos entraves, mas aos poucos vê-se tentado a ceder e forja com a jovem uma densa e singular cumplicidade, desfazendo, em parte, a solidão e o cepticismo que o atormentam.

Se por um lado segue os moldes e convenções dos filmes de boxe, exibindo os clichés e situações habituais do género, "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" não se esgota nesse formato, e apresenta uma interessante perspectiva sobre as dimensões do sonho e da desilusão, focando as interligações de um absorvente trio de personagens (para além do duo Swank/Eastwood, destaca-se ainda Morgan Freeman no papel de um ex-pugilista amigo de Dunn, que é também o narrador do filme).

De facto, a primeira hora da película segue a rotina que marca a maioria dos filmes de boxe, expondo episódios mais ou menos previsíveis e estereotipados. Contudo, essa fase inicial do filme consegue ser absorvente devido à tridimensionalidade das personagens principais, capazes de ultrapassar as limitações do argumento.

"Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" atinge maior brilho e densidade na sua etapa final, onde acontecimentos inexoráveis despoletam uma aura soturna e claustrofóbica que tornam o filme numa obra marcante e a espaços demolidora. No entanto, aqui mantêem-se ainda aspectos não muito conseguidos, como a caricatural caracterização da família de Maggie ou pontuais passos em falso do argumento, que aposta em demasiadas muletas pouco verosímeis para disseminar uma sobrecarga de desalento e ambientes trágicos.

Em certos momentos, há perigosas aproximações com os estafados telefilmes que focam "um caso da vida", dado o nível de negritude e infortúnio. Felizmente, Eastwood envereda quase sempre por tons sóbrios e discretos, evitando armadilhas do melodrama mais fácil e pegajoso, abordando as situações com considerável subtileza.

O trio de personagens é suficientemente intrigante, e o facto de serem interpretados por actores de primeira linha - excepto Eastwood, cujo desempenho, apesar de esforçado, é apenas competente - ajuda a gerar boas doses de carisma e intensidade. O contraste entre o cativante idealismo de Maggie e o cinzento cepticismo de Frankie funciona particularmente bem, e a química e entrega dos dois actores ajuda a que as personagens se tornem sempre envolventes.

A realização é subtil e adequadamente minimalista, enveredando por um realismo cru e despojado, e o óptimo trabalho de fotografia e iluminação auxiliam a disseminação de uma forte carga sombria e soturna, contribuindo para acentuar a forte tensão dramática da película. Eastwood consegue filmar de forma convincente tanto as dinâmicas cenas de combate no ringue, irradiando uma energia cinética contagiante, como os episódios mais pausados e lacónicos, oferecendo momentos de grande impacto emocional.

O resultado é um filme sólido, maduro e honesto, o mais entusiasmante de Eastwood nos últimos anos, depois do sobrevalorizado "Mystic River" e dos desapontantes "Dívida de Sangue" e "Um Crime Real". Os epítetos de obra-prima e inspirada prova de genialidade - com que "Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos" foi recebido de forma quase unânime - é que não serão os mais apropriados, uma vez que não há aqui nada de verdadeiramente inovador e o filme contém, como foi referido, alguns desequilíbrios.

Mesmo assim, possui méritos suficientes para se tornar numa obra cujo visionamento se recomenda, dando aos actores o espaço que estes merecem e abordando de forma inteligente o âmago das relações humanas, elementos nada negligenciáveis.

E O VEREDICTO É: 3/5 - BOM